sexta-feira, 3 de abril de 2020

EM MEIO A TINTAS E CORES - Roberval Paulo


Este texto está publicado no Jornal do Tocantins MAGAZINE
CRÔNICAS & CAUSOS, Edição de 17/03/2020

                               "A cor dos meus olhos, dos meus cabelos, da minha pele. Das minhas unhas, dos meus dentes, dos meus pelos. A cor da minha vida, dos meus dias. A cor da minha poesia e da minha alma. Eram as minhas cores todas. O desenho ia tomando forma. O escuro, o branco e o sem cor cedendo espaço ao colorido; o humano ao divino; o sentimento dando lugar à arte."

Ele pintava. Somente e simplesmente pintava. Nada mais a ele fazia sentido, exceto a pintura. Tudo perdera a forma, a razão de ser, de existir. O porquê, o pra quê, o de onde vem, para onde vai, nada importava. Tudo perdera tudo. Nesse momento, era o nada sendo tudo e o tudo, ao mesmo tempo, arvorando-se em ser nada. Era ele e a tela. Só ela existia e ele pintava.

Eu observava deslumbrada com que enlevo ele encarava aquela tela e também me encantava. Quanta magia naquelas mãos. Era contagiante; tanto que passei a examiná-lo com mais atenção e vi aquilo em formas e cores se transformando. Ainda não definia o que era, mas, tinha uma certeza. Ele pintava as minhas cores. Só as minhas cores existiam no seu toque mágico de pincel e desfilavam pelo universo sem fim da quadriculada e dimensional tela. Pareciam adquirir vida própria as minhas cores.

A cor dos meus olhos, dos meus cabelos, da minha pele. Das minhas unhas, dos meus dentes, dos meus pelos. A cor da minha vida, dos meus dias. A cor da minha poesia e da minha alma. Eram as minhas cores todas. O desenho ia tomando forma. O escuro, o branco e o sem cor cedendo espaço ao colorido; o humano ao divino; o sentimento dando lugar à arte.

Ali, do meu canto de observação, deliciei-me com a surpresa. Lá estava eu, emoldada e ornada naquela paisagem inanimada que, aos olhos da mente, vivia e dava vida àquele recanto tão só meu. Doce regato de água e folhas, tão real e verdadeiro como o horizonte dos olhos. Eu estava perfeita. Em carne e osso, em corpo e espírito, em branco e a cores, em alma e sentimento.

Pareceu-me, no entanto, que ainda faltava algo. Olhei para ele e vi que hesitava. Pintava, matizava, contornava, corroborava, parece que procurando descobrir o que de fato estava dali ausente. E eis que de repente, não mais que de repente, tudo se torna claro a ele ao mesmo tempo em que a mim. Era isso! Era só o que faltava e lá estava ele completando a sua obra com maestria e desvelo. A mão no pincel, os olhos na tela, o toque final, transcendendo o que não se pode transcender. A mão ao coração para pintar um coração; o coração. O meu, o nosso coração que eu já não sabia mais de quem era, se é que coração pode se dizer pertencente a alguém.

O trabalho estava perfeito, concluso, terminado. Era mágico, Divino, uma verdadeira obra de arte. E era eu ali, deslumbrante naquela tela, intocável, majestosa. Tarefa concluída! Exprimi um desabafado suspiro e, me vi sozinho. Eu estava sozinho! Eu era o pintor! Tinha me pintado na tela, mas não era eu; era ela que ali estava envolvida e embebida em tantas tintas e cores. Ao primeiro momento, cuidei em achar que estava doido, que tinha enlouquecido. Mas logo em seguida, numa dessas descobertas instantâneas e inexplicáveis da mente, num estalo, descobri que eu era ela e que ela era eu. Ou melhor, eu estava nela e ela estava em mim. Enquanto eu pintava, eu também era ela que se desprendia de mim e ali, do lado, certificava-se se tudo estava saindo perfeito; se ela estava saindo perfeita. E assim, eu olhava para o pintor, que era eu, pintando ela, que estava em mim.

Não me peçam que explique essa loucura; penso não ser capaz, nem acredito que isso seja possível. Não queiram desvendar o que não se desvenda. Não queiram real nem lógico ao que habita o universo dos mistérios. Não busquem entender o que não se dá ao entendimento. Mas comigo acontece, aconteceu e, tenho certeza, acontecerá. É que eu, sou eu só, entende; mas ela está em mim, impregnada no meu ser e na minha imaginação. Impregnada em minhas mãos, nos meus gestos, na minha mente e no meu coração.

E ela é tão real em meu pensamento e em meu ser, que eu me dispo dela e a ponho do meu lado para passá-la à tela, enquanto ela me observa. E isso, de tal maneira, figura-se como tão verdadeiro, que às vezes ouço a sua voz e até conversamos.

Mas logo, tarefa concluída, vejo-me sozinho e caio na real realidade. Ela dá-me um breve adeus e volta para dentro de mim, passando novamente a alimentar meus sonhos, minha mente, meu sangue. O meu coração e o meu corpo inteiro. Eu todo, inspirando-me para a criação do próximo trabalho, quando a terei novamente ao meu lado. Ela, fulgurante, se deliciando e irradiando felicidade e prazer por protagonizar esse meu devaneio tão real.

É a minha mais doce não menos que colorida história de amor. Somos dois nessa narrativa de um só personagem; eu, o pintor, monodramático, havendo-me com as lutas interiores do meu espírito. Terei cura?

Roberval Paulo