terça-feira, 23 de junho de 2020

MUNDO HIDRÁULICO, HIDRÁULICO MUNDO, SE EU ME CHAMASSE RAIMUNDO - Roberval Paulo


'Aqui no sertão se fala é nóis vai, só que quando eu falo nóis vai, nóis vai mermo, num tem conversa nem enrola. Lá os doutor da tecnologia fala nós vamos e a gente fica esperando e eles num sai do lugar".
Analisando o ambiente tecnológico no qual estamos inseridos, rodeados e amparados por um exército de máquinas e aparelhos em detrimento das ações manuais de coração e de humanização tão necessárias à disseminação do amor, recorro a uma “oração” – com o perdão da palavra – que ouvi em um passado não muito distante, lá no interior do meu lugar, dita por um senhor simples, do povo, semianalfabeto, mas de sabedoria a botar no bolso os letrados do imediatismo operado e praticado nos dias atuais.
Em conversa com este senhor, falava-lhe da tecnologia da informação objetivando integra-lo a este ambiente, mas utilizando um vocabulário que fosse por ele alcançado, abrindo mão dos termos americanizados que tomaram de arroubo a nossa cultura e a nossa fala, tornando-se nossos, buscando assim, na minha ingenuidade altruísta, faze-lo melhor e mais facilmente entender o que lhe estava dizendo.
Eis que o sábio senhor me surpreende ao olhar-me dentro dos olhos e dizer-me: “Seu Roberval, estudei muito pouco, só fui na escola pur causa das peia de mãe e foi pouco tempo pois o trabaio num deixava, então aprendi pouco na escola, mas a vida que levei e levo até hoje me ensinou tudo que sei. E esse tudo que sei é tão pouco que as veiz eu penso que num sei é de nada, porque esse negócio de tecnologia eu num alcanço nem dô nutícia.
Aqui no sertão se fala é nóis vai, só que quando eu falo nóis vai, nóis vai mermo, num tem conversa nem enrola. Lá os doutor da tecnologia fala nós vamos e a gente fica esperando e eles num sai do lugar.
Aqui ó, eu vou na cidade, vendo uns 03 ou 05 gado, uns saco de arroz e de farinha e o homi me paga na hora sem vê nada. Mais depois ele vai lá em casa buscar no dia que ele quiser porque ele sabe que é dele, ele comprou e num dá negócio errado ninhum.
Lá na tecnologia os doutor assina documento, o banco assina, cartório assina tamém e vem umas tar de testemunha e fiador pra fiar o que num tem e mermo com esse tanto de trem dá tudo errado. Num paga, dá briga, entra adevogado e o trem fede mais num paga.
Aqui vou na venda de seu Dudim e pego uns trem e ele anota, até umas pinga e cerveja quando tô mei virado das venta. Lá tem é uma caderneta de anotar o que nóis compra, pra lembrar né, senão nem anotava. Meus menino vai lá e pega, minha muié pega e todo mundo lá de casa. Chegando o fim do mês, vendo uns trem lá do sítio, vou na venda e pago tudo e vou pegando tudo que quero de novo e num dá encrenca.
Lá os doutor vai na loja e compra num tar de crediário, cartão, cheque, sei lá o que mais, é tanto jeito de comprar que num sei e depois a loja cobra, o juro corre, quem vendeu briga, quem comprou briga e num paga e dá tudo pra trás.
O pulítico vai na televisão e fala que vai fazer e acontecer, que luta pelo povo e que vai fazer pra nóis o mió, o que for bom. Depois só vê no jornal é disvio, roubo, uma tar de corrupção, o fiio desse comprou fazenda, o fii do outro um carrão grande e caro, já vem outro com dinheiro até nas cueca, onde já se viu? Eles mamando direto e o povo só chupando sem sair nada. Tá tudo de mudado seu Roberval, esse mundo tá trapaiado demais, num sei nem mais o que dizer, tá tudo fora do êxo.
Tem um tar de zap zap nos celular de correr dedo fuxicando mais que língua de sogra. Mais num é da minha sogra não, que minha sogra é muié boa, é da sogra de outros aí. É tanto fuxico nesse zap que só vê muié brigando cum marido, gente largando, famia se acabando e por aí vai. O povo perdeu o tino, tá sem rumo.
A televisão só mostra coisa ruim, é assalto, morte, traição, fome e a miséria cresceno. Umas igreja aí que salvava o povo agora só vê pedindo dinheiro e o povo dano e eu num sei pra onde que vai esse tanto.
O que digo e que boto fé é que quase num sei de nada, mais no mei dos que sabe muito o errado tá correndo solto e num tem quem pegue nem chegue perto..
Aqui nesse fim de mundo onde Deus ainda mora as coisa é diferente. Aqui nóis se baseia é na palavra. É o que nóis tem que mais vale é a palavra. Se o cabra der pra trás no que ele garantiu, tá desmoralizado e o homi desmoralizado perde o valor e a confiança. É um sujeito sem vergonha e tem que viver de cabeça baixa, num dá não.
Esse mundo de hoje tá muito inteligente pra nóis aqui do sertão entender. Pra num incumpridar mais a conversa, esse trem de tecnologia eu num sei pra onde vai nem corretivo dô. Pra mim, aqui com meus botão, esse mundo tá é hidráulico mesmo seu Roberval. Esse mundo tá hidráulico demais, é isso que penso e tiro ciência.”
Boquiaberto fiquei e boquiaberto ainda estou. Recebi uma aula de civilidade e de cidadania. Confesso que me senti envergonhado com tudo que escutei de seu Raimundo. Mas botando fé e tirando ciência – termos do vocabulário de seu Raimundo – ele, que diz quase de nada saber, sabe muito mais do que muitos de nós. Sabe muito mais do que eu e, na sua sabedoria interiorana e sertaneja, fez-me compreender que a honra e a dignidade e ainda a moral são atributos Divinos herdados por nós e por nós devem ser cultivados e mantidos, assegurados, sejam quais forem as situações vivenciadas e enfrentadas.
Enfim, trazendo para o nosso viver a nobre vivência de seu Raimundo, replico: sejam quais forem as circunstâncias, não se corrompas e, em ti, não serás corrompido. Esta foi a lição que recebi de seu Raimundo e busco leva-la para a vida toda.
Roberval Paulo

quarta-feira, 10 de junho de 2020

ESSE INFERNO DE DANTE - Roberval Paulo


Se eu for por aí
Só no espírito de andante
Seguindo a trilha estafante,
Seja ao sul ou seja ao norte
Não importa o destino.
Para seguir seu caminho
Mesmo tentando o alinho
Acautele-se com a sorte

É que o caminho se faz conforme o viajante
E o viajante faz-se conforme o seu caminho
É como que fosse um sendo a extensão do outro
É como se esse outro fosse a redenção do um

E na estrada certa ou no caminhar errante
Terás sim os teus triunfos e também terás fracassos
Terás os seus dias tristes em noites de azul mormaço
É a natureza acolhendo e forjando o seu passante

Se eu me for por aí
Só no espírito de andante
E o sol me bater no peito
E o frio me ser cortante

Serei sempre o caminhante
Indo à cata do final
Seja exposto em campo aberto
Seja em meio ao matagal

Sendo habitante de mar
Ou de uma galáxia distante
Sou uma peça do xadrez
Neste inferno de Dante

Se purgatório... terá?
Se paraíso, não sei?
Só sei e talvez nem sei
Como Sócrates revelou

Ele também se embrenhou
Nessa estrada que é só ida
Que ia saltar da vida
Ele disso já sabia
Mas outra vida, teria?
Eu só sei que nada sei!
Tanto faz, plebeu ou rei
O mesmo começo e fim

Com o agravante, enfim
De nada saber de lá
Mas vai sem pestanejar
Num adianta resistir
Ao futuro tem que ir
Sem saber o que tem lá
É bom se resignar
Aqui é tanto flagelo
No andor ou no chinelo
Vai estar na procissão
O norte é a sua missão
Arvore-se a cumpri-la
Para enfim, no fim da trilha
Descansar seu coração.

Roberval Paulo


terça-feira, 9 de junho de 2020

MARCAS DE LUZ - Roberval Paulo


São marcas de luz que o tempo me deu. Como hoje penso é reflexo desse andar
Como pondero antes de agir e de me posicionar! Quanta paciência carrego em meu ser
O ferreiro segue moldando a peça. A forja é o instrumento e a força um complemento. O fogo é o próprio alimento que molda o molde pensado
O ferreiro, a forja e o fogo são elementos do seu caminhar. Elementos por demais importantes nos dias da sua estrada, mas, pouca atenção lhes damos, pois queremos ser bem mais 
Mas não, não somos. Definitivamente não somos. Somos somente a peça; a peça menor de toda uma engrenagem. Uma engrenagem maior e superior. Engrenagem essa que se intitula vida
Lutar pela vida é razão e a essa luta vamos com todas as nossas forças. Ora triunfando e ora despedaçando o nosso existir que é o nosso coração
Lutar pela vida é bom e, inexoravelmente, espelha o fundamento fundado no sacramento. Um sacramento diáfano, resiliente, transluzente e comprazente da nossa nobre missão
Mas lutar contra a vida é tolice, é estultice. É estupidez pra não dizer burrice; é quimera e solidão
A vida é superior e maior, muito maior. A vida é tudo e é senhora de si. A vida é o ferreiro, a forja, o fogo. E você, ah meu Deus, quem é você?  Quem você pensa que há de ser?
Você é simplesmente e também, singularmente, a peça viva e importante, mas também comum tal como inconstante; a peça menor desse jogo.
Roberval Paulo.