quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

ANGÚSTIAS! - Roberval Paulo

Não sei mais por onde andar
Não sei nem porque cheguei
Meus caminhos caminhei
Por entre serras e mar
Viajei daqui pra lá
O inverso também fiz
Risquei o chão feito giz
Sendo o ator do meu passar
No quadro negro do olhar
Não sou triste nem feliz


Feito cordão de enxurrada
Desgovernada e sorrindo
Se arrastando e destruindo
Sou eu abrindo a picada
Um rasgo no mei do nada
Sigo formando erosão
Carregando a nação
Viagem desesperada
Tô pra lá da caminhada
E ainda rasgando chão

Minha vida se varia
Quando falo de saudade
Ouço gritos da cidade
No cantar da cotovia
A noite dentro do dia
É complemento do nada
Cravo no peito a espada
Do teu olhar matador
Me acho no teu amor
Te perco na caminhada

São tempos tão conturbados
O que hoje vivenciamos
Que de uns tempos para cá
Não sei nem de quantos anos
É tanto acontecimento
Que eu penso por um momento
Que nos desencaminhamos.

Roberval Paulo

DESCONSTRUINDO A POESIA - Roberval Paulo

Minha cidade é tão bonita!
Composta de ladeiras e descidas
Você sobe e depois desce
Pois se não descesse,
Era capaz de dar direto no céu

Mas minha cidade é realmente bela
Repleta de mangueiras, quintais e laranjais
Você sobe, tira e de lá desce
Porque se não descer,
Com o tempo vem a cair feito manga

Minha cidade é mesmo bela, tão bonita!
Sinfônica na sinfonia dos pardais
Você escuta e tome viagem no tempo
Mas não sobe e nem desce
De verdade, nem sai do lugar
Só escuta e ali mesmo fica,
A pisar na física do chão do chão

Minha cidade é ainda mais bela e bonita
De serenatas e donzelas nas janelas
Você canta, ela escuta e tu corre
Porque senão o pai dela te acerta
E tá feita a confusão

Minha cidade é só minha cidade
E eu sou a poesia em desconstrução.

Roberval Paulo

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

CRENÇA! - Roberval Paulo

A folha da palmeira roça o meu rosto
E me diz palavras de vento
E lá distante, bem antes do advento
O coqueiro já era na beira do mar

As baleias e o seu canto chamando o amor
O apito do trem e a vida a passar
No norte da vida o sino a tocar
E os trilhos sem fim de um andar agnóstico

O existir é maior que a razão
E o natural é mais que qualquer plano
A ciência é o limiar de todo engano
E o amor não é fogo que arde sem se ver
É, antes de ser fogo, a própria chama
Que inflama, reclama e se porta feito dor
Mas é em mesmo tempo a cura indolor
Que faz a mãe amar o filho ingrato
Esquecendo de infarto e de súbito impacto
A dor maior, a dor sem cor
A dor de amor, a dor do parto

A ciência não é cura, é realmente infarto
A natureza é que leva a vida adiante
O homem traça a estrada errante
E se faz perdido entre a multidão
E eu o esteio do seio de Abraão
Que culpa tenho eu, eu não fiz a vida!
É que o pastor agora é a ovelha perdida
Se perdeu do rebanho e está sozinho.
O errar do homem é o seu existir
Que orgulho em ir sem saber pra onde ir
E se dizer senhor do seu destino?

Ora pois, que destino! Qual destino?
Como enfim a roda explicar?
A bola do mundo no espaço a girar
E eu rodando com meus pensamentos
Minha cabeça na bandeja do tempo
E eu avesso à cronologia
Mato um leão todo santo dia
E sou réu confesso do santo no altar
O bom da vida é saber esperar
Mas firmar o passo tão logo nasce o dia.

Roberval Paulo

EXISTÊNCIA! - Roberval Paulo


O existir está longe de ser isso que vês
O existir é tudo e não me iludo
Do ópio imaterial
à escuridão do matagal
Da imensidão do ser
à insignificância do ter

Penso, logo existo!
Descartes descarta a carta
Na casta de um mundo real
De um pensar que se desgasta
Se não pensar, inexiste?
Descartes tosse...e se engasga

Existir é ser espaço
É ser vento e ser andança
É ser o risco no passo
É ser o passo na dança

Viver é tão perigoso!
Ainda mais quando o vivente
Vivendo a vida se lança
Ao exercício de um tudo
E vestido de esperança
Se vai por aí sem rumo
Rumo ao rumo da distância
Tão distante que aproxima
A velhice da infância


Existir é contar estrelas e delas nada saber
Mas saber, inclusive, que elas nos habitam
Saber que no frigir dos ovos e da própria existência  
Somos mais estrelas que pó
Mais espaço que esfera
Mais trigo que pão de ló

Enfim, mais nuvem do que artérias
Mais espírito que matéria
Mais multidão do que só.

Roberval Paulo

JORNADA - Roberval Paulo

Rompi com os umbrais do estradar
Adentrei na fantasia todo altivo
Recordei o meu tempo de cativo
Para enfim valorar o caminhar
A estrada sempre foi o meu manjar
É que a mente saboreia o seguir
O viajante não se cansa de ir e vir
E o cansaço faz o ponto de parada
Já me vou pra lá do meio da jornada
Compilando, agregando e a corrigir

A jornada dessa vida é tão astuta
Que a estrada nunca diz como se andar
Ela só se mostra aberta e fica lá
Se dispõe e você faz a labuta
Como rota ela é absoluta
Sem ela você nunca vai chegar
A jornada e a estrada é um mesmo lar
São estas a bússola do viajante
Sendo perto a viagem ou distante
Tanto faz, vai ter que nelas passar

Então faça da vida sua estrada
Ora ande, ora pare a descansar
Desfrute de tudo que ela mostrar
Ande sempre mas também faça parada
Respire fundo quando esta for bloqueada
Altere a rota e planeje o próximo passo
Force a passagem se estiver no seu espaço
Caso contrário faça a correção de rumo
Busque um atalho, vá com Deus e siga o prumo
E descubra em que porto quer chegar.

Roberval Paulo



terça-feira, 7 de janeiro de 2020

O MENINO DO INTERIOR - Roberval Paulo


Esta crônica está publicada no 
Jornal do Tocantins CRÔNICAS & CAUSOS, edição 07/01/2020 

Conheci Charliedson a pouco mais de um ano na empresa em que eu trabalhava. Veio do interior tangido pela necessidade premente do estudo, buscando cursar a tão almejada e sonhada faculdade. Chegou à nossa empresa contratado como estagiário e trouxe-nos tanta alegria que até hoje, ao recordar-me das engraçadas situações em que Charliedson se metia em razão da sua genuína ingenuidade, derreto-me em sorrisos, mas também em agradecimentos por, em pleno século XXI – em que se consolida cada vez mais a batalha dos egos, do egoísmo e da individualidade – ter conhecido alguém ainda tão puro e tão íntegro, desprovido e despojado da poção ambiciosa que acomete a grande maioria da nossa tão assustadoramente mortificada população.

Charliedson era, e, após um ano de conhecimento e de vivências compartilhadas, continua sendo um caso a parte; um ponto fora da curva; uma laranja sã a retornar à sanidade as laranjas a muito apodrecidas. Um sonho real em nossa tão surreal realidade. Uma planta vicejante e alvissareira, regada pela água da simplicidade e da transparência Divina, a sobreviver e se fortalecer em meio à densa mata selvagem de ervas daninhas que buscam seu lugar ao sol espalhando sombras sobre o sol daqueles que não lhes agregam benefícios.

Vivemos a tão ultrajante regra do toma lá da cá; das relações pelas conveniências; do respeito ao próximo, mas só quando o próximo estiver bem próximo e não ameaçar a sua escalada, regra da qual, definitivamente, Charliedson não comunga e não faz parte de forma alguma, tão nobre é o seu senso de responsabilidade com a sua existência em relação à existência do outro.

Mas não só o seu caráter reto e probo e sua consciência igualitária chamaram minha atenção. A sua ingenuidade interiorana e matreira, seu ar de ironia sertaneja e seu comportamento entre acanhado e feliz, fizeram-me, a cada dia, um seu ávido e ardoroso observador e seu assíduo fã.

A nossa Capital, ainda em plena expansão e desenvolvimento, não é assim tão grande se comparada às grandes metrópoles, mas, para quem veio do interior, cidade com um pouco menos de dois mil habitantes, sendo sua primeira viagem à cidade grande, Palmas torna-se o gigante adormecido. É a metrópole vista pela televisão e agora desnudada frente à visão arteira de Charliedson, que no seu primeiro contato com as avenidas largas de tráfego intenso e com tanta gente atravessando nos sinais, olhou e nem pensou para lançar a sua primeira pérola: “Eita que com tanto carro e gente se misturando num dá nem pra saber quem ganha essa corrida. Fico olhando e num sei quem sai na frente”.

Os dias passam e todos os dias Charliedson traz graciosidade e liberdade para o nosso escritório de reclusão e de portas fechadas para o mundo lá fora. Leva bom humor aos mal-humorados e dá suporte, sem querer, aos que não mais se suportam. Quando ele chega parece que os cadeados da sisudez e do mau humor destravam-se e se destampam de sorrisos em resposta forçada pelo seu sorriso franco; pelo seu olhar entre desconfiado e acanhado, mas transparente e acalentador.

Certo dia chegou ao trabalho às gargalhadas e dizendo: “Hoje cedo me aconteceu o inacontecido que não tem como acontecer a quem acontece, só a mim mesmo”. E ria de dar gosto de ver e de até imita-lo as gargalhadas. Frente aos nossos olhares e sorrisos, ele continuou: “Minha gente, entrei no ônibus hoje desligado da vida, dei o dinheiro ao motorista e chegando na catraca, rodei mais não passei. Olhei pro motorista sem entender nada e ele me olhava entendendo menos ainda. Ficamos olhando um pro outro por algum tempo sem nada falar e aí ele disse com o olhar arregalado: –Tu num passou? Eu respondi: –Num passei. Olhamos de novo um pro outro, desconcertados. O ônibus parado, passageiros me atropelando e entrando, o povo me olhando e eu olhando pro motorista querendo que o mundo acabasse ali ou que uma bomba explodisse e tudo deixasse de existir. Aí o motorista correu as vistas pelo todo do ônibus e fitando-me de novo, começou a querer rir e eu disse: –Se tu rir eu choro bem aqui. Caímos todos numa gargalhada coletiva mas tão desconcertante que quando cessou, imperou-se de novo o silêncio da morte. Sem saber o que dizer e com vergonha de dizer, eu só disse: –E agora? Ele ainda de olhar arregalado, respondeu: –Agora lascou. Criei coragem e disse:  –Tem mais dinheiro não? Ele respondeu: –Agora que lascou foi tudo. Rimos de novo, mas um riso contido a procurar buraco pra esconder a cara. Ele pensou um pouco e disse: –Senta aí, –e me apontou o tampão do motor– vai aqui mesmo e lá tu sai pela entrada que aí é como se tu num tivesse nem entrado. Eu disse: –Tá –e sentei.

Tava quente, bem quente aquele tampão de plástico duro, mas num tive nem coragem de me levantar. Chegando no meu destino ele parou e me olhou. Eu o olhei, levantei e desci sem dizer nada. Lá de fora virei e ele tava me olhando com o canto da boca meio subindo e a veia da goela quase a saltar do pescoço; acho que tava querendo rir mais de mim. Se riu se não riu eu num sei, pois virei as costas e saí num caminhar tão ligeiro que parece que nem pisava no chão, ia flutuando. Eu caminhava mas parecia estar voando e com aquela sensação de não existir. Foi essa talvez a maior vergonha que já passei na vida por causa de uma catraca que rodei e num passei. Credo em cruz! À tarde volto por outra rota, mais aquele motorista quero ver mais não.”

Rimos todos e o dia começou mais leve e alegre pela alegria de Charliedson que fazia graça até na dificuldade. Um ano se passou e passou o seu estágio e ele se foi. Acho que foi por aí a clarear onde é escuro, pois foi o que ele fez aqui durante a sua estadia. Estou com medo que a escuridão volte ao nosso viver como antes de Charliedson. Por isso sigo lendo a sua lição e sereno e confuso, vou estagiando a nossa permanência no estágio em que ele nos deixou. De graça e de paz, mesmo quando graça e paz não nos forem presentes. De sol e de luz mesmo quando as sombras insistirem em nos escurecer.

Roberval Paulo