Esta crônica está publicada no
Jornal do Tocantins CRÔNICAS & CAUSOS, edição 07/01/2020
Conheci
Charliedson a pouco mais de um ano na empresa em que eu trabalhava. Veio do
interior tangido pela necessidade premente do estudo, buscando cursar a tão
almejada e sonhada faculdade. Chegou à nossa empresa contratado como estagiário
e trouxe-nos tanta alegria que até hoje, ao recordar-me das engraçadas
situações em que Charliedson se metia em razão da sua genuína ingenuidade,
derreto-me em sorrisos, mas também em agradecimentos por, em pleno século XXI –
em que se consolida cada vez mais a batalha dos egos, do egoísmo e da
individualidade – ter conhecido alguém ainda tão puro e tão íntegro, desprovido
e despojado da poção ambiciosa que acomete a grande maioria da nossa tão
assustadoramente mortificada população.
Charliedson
era, e, após um ano de conhecimento e de vivências compartilhadas, continua
sendo um caso a parte; um ponto fora da curva; uma laranja sã a retornar à
sanidade as laranjas a muito apodrecidas. Um sonho real em nossa tão surreal
realidade. Uma planta vicejante e alvissareira, regada pela água da simplicidade
e da transparência Divina, a sobreviver e se fortalecer em meio à densa mata
selvagem de ervas daninhas que buscam seu lugar ao sol espalhando sombras sobre
o sol daqueles que não lhes agregam benefícios.
Vivemos
a tão ultrajante regra do toma lá da cá; das relações pelas conveniências; do
respeito ao próximo, mas só quando o próximo estiver bem próximo e não ameaçar
a sua escalada, regra da qual, definitivamente, Charliedson não comunga e não
faz parte de forma alguma, tão nobre é o seu senso de responsabilidade com a
sua existência em relação à existência do outro.
Mas
não só o seu caráter reto e probo e sua consciência igualitária chamaram minha
atenção. A sua ingenuidade interiorana e matreira, seu ar de ironia sertaneja e
seu comportamento entre acanhado e feliz, fizeram-me, a cada dia, um seu ávido
e ardoroso observador e seu assíduo fã.
A
nossa Capital, ainda em plena expansão e desenvolvimento, não é assim tão
grande se comparada às grandes metrópoles, mas, para quem veio do interior,
cidade com um pouco menos de dois mil habitantes, sendo sua primeira viagem à
cidade grande, Palmas torna-se o gigante adormecido. É a metrópole vista pela
televisão e agora desnudada frente à visão arteira de Charliedson, que no seu
primeiro contato com as avenidas largas de tráfego intenso e com tanta gente
atravessando nos sinais, olhou e nem pensou para lançar a sua primeira pérola:
“Eita que com tanto carro e gente se misturando num dá nem pra saber quem ganha
essa corrida. Fico olhando e num sei quem sai na frente”.
Os
dias passam e todos os dias Charliedson traz graciosidade e liberdade para o
nosso escritório de reclusão e de portas fechadas para o mundo lá fora. Leva
bom humor aos mal-humorados e dá suporte, sem querer, aos que não mais se
suportam. Quando ele chega parece que os cadeados da sisudez e do mau humor
destravam-se e se destampam de sorrisos em resposta forçada pelo seu sorriso
franco; pelo seu olhar entre desconfiado e acanhado, mas transparente e
acalentador.
Certo
dia chegou ao trabalho às gargalhadas e dizendo: “Hoje cedo me aconteceu o
inacontecido que não tem como acontecer a quem acontece, só a mim mesmo”. E ria
de dar gosto de ver e de até imita-lo as gargalhadas. Frente aos nossos olhares
e sorrisos, ele continuou: “Minha gente, entrei no ônibus hoje desligado da
vida, dei o dinheiro ao motorista e chegando na catraca, rodei mais não passei.
Olhei pro motorista sem entender nada e ele me olhava entendendo menos ainda.
Ficamos olhando um pro outro por algum tempo sem nada falar e aí ele disse com
o olhar arregalado: –Tu num passou? Eu respondi: –Num passei. Olhamos de novo
um pro outro, desconcertados. O ônibus parado, passageiros me atropelando e
entrando, o povo me olhando e eu olhando pro motorista querendo que o mundo
acabasse ali ou que uma bomba explodisse e tudo deixasse de existir. Aí o
motorista correu as vistas pelo todo do ônibus e fitando-me de novo, começou a
querer rir e eu disse: –Se tu rir eu choro bem aqui. Caímos todos numa
gargalhada coletiva mas tão desconcertante que quando cessou, imperou-se de
novo o silêncio da morte. Sem saber o que dizer e com vergonha de dizer, eu só
disse: –E agora? Ele ainda de olhar arregalado, respondeu: –Agora lascou. Criei
coragem e disse: –Tem mais dinheiro não?
Ele respondeu: –Agora que lascou foi tudo. Rimos de novo, mas um riso contido a
procurar buraco pra esconder a cara. Ele pensou um pouco e disse: –Senta aí, –e
me apontou o tampão do motor– vai aqui mesmo e lá tu sai pela entrada que aí é
como se tu num tivesse nem entrado. Eu disse: –Tá –e sentei.
Tava
quente, bem quente aquele tampão de plástico duro, mas num tive nem coragem de
me levantar. Chegando no meu destino ele parou e me olhou. Eu o olhei, levantei
e desci sem dizer nada. Lá de fora virei e ele tava me olhando com o canto da
boca meio subindo e a veia da goela quase a saltar do pescoço; acho que tava
querendo rir mais de mim. Se riu se não riu eu num sei, pois virei as costas e
saí num caminhar tão ligeiro que parece que nem pisava no chão, ia flutuando.
Eu caminhava mas parecia estar voando e com aquela sensação de não existir. Foi
essa talvez a maior vergonha que já passei na vida por causa de uma catraca que
rodei e num passei. Credo em cruz! À tarde volto por outra rota, mais aquele
motorista quero ver mais não.”
Rimos
todos e o dia começou mais leve e alegre pela alegria de Charliedson que fazia
graça até na dificuldade. Um ano se passou e passou o seu estágio e ele se foi.
Acho que foi por aí a clarear onde é escuro, pois foi o que ele fez aqui
durante a sua estadia. Estou com medo que a escuridão volte ao nosso viver como
antes de Charliedson. Por isso sigo lendo a sua lição e sereno e confuso, vou
estagiando a nossa permanência no estágio em que ele nos deixou. De graça e de
paz, mesmo quando graça e paz não nos forem presentes. De sol e de luz mesmo
quando as sombras insistirem em nos escurecer.
Roberval Paulo
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