terça-feira, 7 de janeiro de 2020

O MENINO DO INTERIOR - Roberval Paulo


Esta crônica está publicada no 
Jornal do Tocantins CRÔNICAS & CAUSOS, edição 07/01/2020 

Conheci Charliedson a pouco mais de um ano na empresa em que eu trabalhava. Veio do interior tangido pela necessidade premente do estudo, buscando cursar a tão almejada e sonhada faculdade. Chegou à nossa empresa contratado como estagiário e trouxe-nos tanta alegria que até hoje, ao recordar-me das engraçadas situações em que Charliedson se metia em razão da sua genuína ingenuidade, derreto-me em sorrisos, mas também em agradecimentos por, em pleno século XXI – em que se consolida cada vez mais a batalha dos egos, do egoísmo e da individualidade – ter conhecido alguém ainda tão puro e tão íntegro, desprovido e despojado da poção ambiciosa que acomete a grande maioria da nossa tão assustadoramente mortificada população.

Charliedson era, e, após um ano de conhecimento e de vivências compartilhadas, continua sendo um caso a parte; um ponto fora da curva; uma laranja sã a retornar à sanidade as laranjas a muito apodrecidas. Um sonho real em nossa tão surreal realidade. Uma planta vicejante e alvissareira, regada pela água da simplicidade e da transparência Divina, a sobreviver e se fortalecer em meio à densa mata selvagem de ervas daninhas que buscam seu lugar ao sol espalhando sombras sobre o sol daqueles que não lhes agregam benefícios.

Vivemos a tão ultrajante regra do toma lá da cá; das relações pelas conveniências; do respeito ao próximo, mas só quando o próximo estiver bem próximo e não ameaçar a sua escalada, regra da qual, definitivamente, Charliedson não comunga e não faz parte de forma alguma, tão nobre é o seu senso de responsabilidade com a sua existência em relação à existência do outro.

Mas não só o seu caráter reto e probo e sua consciência igualitária chamaram minha atenção. A sua ingenuidade interiorana e matreira, seu ar de ironia sertaneja e seu comportamento entre acanhado e feliz, fizeram-me, a cada dia, um seu ávido e ardoroso observador e seu assíduo fã.

A nossa Capital, ainda em plena expansão e desenvolvimento, não é assim tão grande se comparada às grandes metrópoles, mas, para quem veio do interior, cidade com um pouco menos de dois mil habitantes, sendo sua primeira viagem à cidade grande, Palmas torna-se o gigante adormecido. É a metrópole vista pela televisão e agora desnudada frente à visão arteira de Charliedson, que no seu primeiro contato com as avenidas largas de tráfego intenso e com tanta gente atravessando nos sinais, olhou e nem pensou para lançar a sua primeira pérola: “Eita que com tanto carro e gente se misturando num dá nem pra saber quem ganha essa corrida. Fico olhando e num sei quem sai na frente”.

Os dias passam e todos os dias Charliedson traz graciosidade e liberdade para o nosso escritório de reclusão e de portas fechadas para o mundo lá fora. Leva bom humor aos mal-humorados e dá suporte, sem querer, aos que não mais se suportam. Quando ele chega parece que os cadeados da sisudez e do mau humor destravam-se e se destampam de sorrisos em resposta forçada pelo seu sorriso franco; pelo seu olhar entre desconfiado e acanhado, mas transparente e acalentador.

Certo dia chegou ao trabalho às gargalhadas e dizendo: “Hoje cedo me aconteceu o inacontecido que não tem como acontecer a quem acontece, só a mim mesmo”. E ria de dar gosto de ver e de até imita-lo as gargalhadas. Frente aos nossos olhares e sorrisos, ele continuou: “Minha gente, entrei no ônibus hoje desligado da vida, dei o dinheiro ao motorista e chegando na catraca, rodei mais não passei. Olhei pro motorista sem entender nada e ele me olhava entendendo menos ainda. Ficamos olhando um pro outro por algum tempo sem nada falar e aí ele disse com o olhar arregalado: –Tu num passou? Eu respondi: –Num passei. Olhamos de novo um pro outro, desconcertados. O ônibus parado, passageiros me atropelando e entrando, o povo me olhando e eu olhando pro motorista querendo que o mundo acabasse ali ou que uma bomba explodisse e tudo deixasse de existir. Aí o motorista correu as vistas pelo todo do ônibus e fitando-me de novo, começou a querer rir e eu disse: –Se tu rir eu choro bem aqui. Caímos todos numa gargalhada coletiva mas tão desconcertante que quando cessou, imperou-se de novo o silêncio da morte. Sem saber o que dizer e com vergonha de dizer, eu só disse: –E agora? Ele ainda de olhar arregalado, respondeu: –Agora lascou. Criei coragem e disse:  –Tem mais dinheiro não? Ele respondeu: –Agora que lascou foi tudo. Rimos de novo, mas um riso contido a procurar buraco pra esconder a cara. Ele pensou um pouco e disse: –Senta aí, –e me apontou o tampão do motor– vai aqui mesmo e lá tu sai pela entrada que aí é como se tu num tivesse nem entrado. Eu disse: –Tá –e sentei.

Tava quente, bem quente aquele tampão de plástico duro, mas num tive nem coragem de me levantar. Chegando no meu destino ele parou e me olhou. Eu o olhei, levantei e desci sem dizer nada. Lá de fora virei e ele tava me olhando com o canto da boca meio subindo e a veia da goela quase a saltar do pescoço; acho que tava querendo rir mais de mim. Se riu se não riu eu num sei, pois virei as costas e saí num caminhar tão ligeiro que parece que nem pisava no chão, ia flutuando. Eu caminhava mas parecia estar voando e com aquela sensação de não existir. Foi essa talvez a maior vergonha que já passei na vida por causa de uma catraca que rodei e num passei. Credo em cruz! À tarde volto por outra rota, mais aquele motorista quero ver mais não.”

Rimos todos e o dia começou mais leve e alegre pela alegria de Charliedson que fazia graça até na dificuldade. Um ano se passou e passou o seu estágio e ele se foi. Acho que foi por aí a clarear onde é escuro, pois foi o que ele fez aqui durante a sua estadia. Estou com medo que a escuridão volte ao nosso viver como antes de Charliedson. Por isso sigo lendo a sua lição e sereno e confuso, vou estagiando a nossa permanência no estágio em que ele nos deixou. De graça e de paz, mesmo quando graça e paz não nos forem presentes. De sol e de luz mesmo quando as sombras insistirem em nos escurecer.

Roberval Paulo


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