segunda-feira, 31 de agosto de 2020

JORNAL DO TOCANTINS - CRÔNICAS & CAUSOS: A NOITE QUE NÃO ERA PRA FANTASMA

Jornal do Tocantins
CRÔNICAS & CAUSOS

A noite que não era pra fantasma

“Como já era noite, o ambiente mal iluminado e regado a cheiro de álcool e fumaça estava lotado.”

31/08/2020 – 06:11

Roberval Paulo - Poeta

Era por volta das dez horas da noite e um vento rarefeito e cortante rasgava o nevoeiro de um céu pouco estrelado, incógnito e embaciado por espessas nuvens, trazendo um aspecto quase que fantasmagórico à paisagem. Pessoas conversavam e sorriam nas portas da principal rua da pequena cidade, alheias às intempéries e transmutações do tempo. Crianças brincavam e corriam descalças e desnudas no sobe e desce da rua enladeirada, iluminada por parcas e opacas lâmpadas, penduradas em postes de madeira roliça e mal talhada, dispostos uns dos outros à distância de formar sombra entre uma e outra, emprestando ao cenário um visual ainda mais desolador e meio que mal assombrado, mas que em nada incomodava ou amedrontava os seus moradores, que em total tranquilidade e paz, regozijavam-se em doces e sonoras gargalhadas, espalhados pelas portas e janelas nas tradicionais e enriquecedoras noites do povoado.

Lá no final desta rua principal, depois de subidas e descidas e de uma curva acentuada para a esquerda que engolia na sua volta toda a visão da cidade, abria-se uma rua secundária. Rua estreita, em blocos de pedras dispostos à mão, com piso altamente irregular, acentuando a irregularidade a quanto mais se avançava pela rua, parece que no claro intento a desacelerar o ânimo e a marcha do transeunte, levando-o, quase que obrigado, a promover parada na única bodega da localidade.

Era um prédio caiado à moda das outras edificações do povoado. Paredes embolsadas em barro e cal e parte com adobes à mostra, dispondo de duas largas e desfiguradas portas a facilitar a entrada. Salão retangular, balcão ao lado e à direita de quem entra a vigiar a saída e mesas e cadeiras espalhadas sem forma. Atrás do balcão uma prateleira de madeira feita a mão e pregada à parede, onde se via quase todo o estoque de mercadorias da bodega: algumas dúzias de garrafas e aguardentes em infusões de todos os gostos, de ervas medicamentosas às de curar mal olhado, segundo a ciência popular; secos e molhados em geral, biscoitos sortidos de sal e doce, fumo de rolo e outras tantas quinquilharias de consumo urgente da freguesia. O balcão decorado pela doceira carrossel, repleta de balas, chicletes e pirulitos; a tradicional balança de pratos e um calhamaço de papel de embrulho descansando sob uma pedra rústica e disforme que ali servia de peso, intimidando a ação forte do vento, que, arrepiante, soprava. Completando o cenário, sacas de cereais espalhadas, em grande quantia, para venda a granel.

No espaço compreendido entre o balcão e a prateleira estava sempre Zé de Nicanor, o proprietário da bodega, a atender a freguesia do mercado, como também os amantes das noites de bar. Como já era noite, o ambiente mal iluminado e regado a cheiro de álcool e fumaça estava lotado. Uns contavam piadas, outros reclamavam; uns lamuriavam-se pela incompreensão da mulher enquanto que um outro, tirado a poeta, dizia da ingratidão do mundo com a existência humana, de modo que ali todos se davam ao momento e se esqueciam da batalha do dia a dia pela sobrevivência e seus consequentes agregados.

Na mesa ao lado do balcão por onde o público obrigatoriamente trafegava ao adentrar o bar estavam Biliu de Bastião e Chico de Martinha em conversação que não vencia. Entre um e outro gole, ânimos já alterados, cada qual mais valente e atrevido, lançavam as mais absurdas propostas e desafios de toda sorte, buscando um sobrepor-se à matreirice do outro, no que atraía a atenção total de todos para a mesa, arrancando gargalhadas a fio e estimulando algumas apostas.

Num repente, Biliu de Bastião, sentindo-se acuado e acossado pelo amigo, desafia Chico de Martinha e em alto e bom som grita.
— Você num tem coragem não cabra, você tem mermo é muita gabolice ora.
Chico, sentindo-se ofendido, não se dá por vencido e retruca:
— Mair num tô dizendo mermo. Pelo que sei frouxo aqui é você. Fique sabendo que eu até mei primo de Lampião sou viu e só num fui pro cangaço com ele porque mãe num deixou.

A plateia grita e aplaude. A essa altura, os presentes da bodega deixam por um tempo suas lamúrias e queixas e formam um círculo em volta dos contendores, manifestando-se em coro a cada nova investida dos tais.
— Ara sô, olha o que diz o mequetrefe. Quer ver que tu num tem coragem? Aposto cem conto de réis que tu num tem — Diz Biliu.
— Aposta que vem é aposta que vai, tá valendo então. Manda aí macho — Responde Chico.
— Pois tá, tu é de coragem mermo é? Então bom. Quero ver você ir agora no cemitério e catar uma cruz da catacumba e trazer aqui ó. É cem contos de réis a aposta. Tu num diz que é de coragem — Desafia Biliu.
Chico dá uma boa gargalhada e diz — Pensei que era desafio de coragem rapaz, isso aí é café pequeno pra mim —Torna a gargalhar e completa — Põe o dinheiro da aposta na mão aí de Zé Lagoa que eu já tô saindo e já já tô aqui de volta todo de cruz nas costas — Faz um gesto de mugango e o sinal da cruz simultâneos à finalização da frase e sai a passo ligeiro rumo ao cemitério sob os olhares da plateia estupefata e em tenebroso silêncio.

Lembrando que a esta altura, o relógio já batia pra mais de onze horas, aproximando-se da meia noite, hora do mistério noturno. Eis que com a saída de Chico rumo ao cemitério à cata da cruz, objeto da terrível aposta, deixando para trás todos os presentes apreensivos e ao mesmo tempo eufóricos, o volume das apostas só aumenta e o conversê toma corpo com todos falando ao mesmo tempo e apostando. Entre um grito e outro de crença ou descrença na volta de Chico com a cruz, Biliu disfarça daqui e dali e sorrateiramente deixa o local sem ser percebido.

Tomando a passos largos o caminho de casa e entrando em ponta de pé para não ser visto, lança mão de um enorme lençol branco e pega imediatamente um atalho rumo ao cemitério, arquitetando pregar uma peça no corajoso Chico que a esta altura devia estar às voltas de realizar seu assombroso encontro com a cruz. Cobrindo-se com o lençol e ajustando dois furos para descobrir os olhos, põe-se de prontidão na porta do cemitério e, oculto pela noite escura, fica o fantasma à espreita e espera do amigo, intentando dar-lhe um susto e ganhar a aposta. Ali, com mais medo que espera, o tempo parece não passar.

Eis que em meio à penumbra, surge no corredor central do cemitério o amigo ombreando uma cruz pra lá de pesada, em total tranquilidade. Ao deixa-lo aproximar-se bem, Biliu fantasma levanta-se e emite aquele grito de fantasma, acreditando na carreira certa de Chico. Qual o quê!

Chico, corajoso que nem mãe em defesa da cria, ao invés de correr, investe sobre o fantasma com toda a ira da noite e de suas vidas passadas. O fantasma, surpreendido, sai de carreira com lençol e tudo. Chico quebra no joelho o braço da cruz e dá no lombo do fantasma ao mesmo tempo em que grita.
— Eita que hoje fantasma apanha mais num perdo meus cem. Fantasma hoje mostra se tem sangue ou se voa — E lapiada que come nas costas do fantasma, que, não aguentando mais, grita para o valente.
— Chico, sou eu, Biliu, seu amigo. Num me bata mais não. Já tô de costas quente.
Chico escuta mais num escuta e peia que desce no costado de Biliu e segue ainda a dizer:
— Ara sô, uma coisa que num sei dizer é se fantasma fala. Biliu é lá da famia dos fantasma? Biliu é vivo, vivim da silva e tá lá na bodega pra me pagar a aposta. Tome e tome que é pra num querer me fantasmar mais — E peia que canta no espinhaço de Biliu.
Biliu num aguenta mais e se entrega. Desvestindo-se do lençol, apresenta a cara apanhada a Chico. Este o olha espantado, com piedade safada nos olhos.
— Uai, num é que é Biliu mermo. Porque num disse logo homi, tinha livrado deu quebrar a cruz do defunto.

Biliu agora sente o medo da noite e sai numa carreira sem fim. Chico junta os pedaços dá cruz e logo chega à venda, onde todos estão em conversa de que este não volta mais. Ao enxergarem Chico e a cruz, surpresa nos olhos de todos. Uns gritam, outros recebem apostas, outros pagam. Uns fazem o sinal da cruz e outros deixam o ambiente assustados. Chico recebe a aposta que estava nas mãos de Zé Lagoa e pede mais uma pra tirar a inhaca do cemitério. A noite é de comemoração e o medo ficou para trás.

De Biliu não se sabe e ninguém viu. Dizem que ainda deve estar por aí, vagando feito fantasma, a curar as marcas cravadas nas costas e na alma. O dia amanhece e a procura por Biliu norteia os sorrisos em todos as cantos da cidade.

Roberval Paulo




sexta-feira, 14 de agosto de 2020

UMA PEDRA NA RUA - Roberval Paulo


Da série FILOSOFIAS DA PEDRA - Autor: Roberval Paulo

A pedra despida
De todo olhar
Ali estendida
Deitada na rua

Era só uma pedra
Sem sonhos, sem nada
Somente uma pedra
Matéria pura

A pedra de pedra
Dura mais que o dia
Fosse ela, a pedra
De mais nobre matéria
Duraria até mais
Que a matéria vida

A vida matéria
De pedra não é
Mas em natureza
São mais que irmãs
Pois que seus destinos
Em terra se encerram
E a terra mãe
Mais mãe do que terra
Acolhe a todos
De gente que é gente
A gente que é pedra
Mas não pedra que é gente
Pois com pedra é diferente

Pedra se mantém
Tal qual como começou
Até me parece
Que sabe mais de amor

A pedra despida
De todo e qualquer olhar
Ali me olhando
Eu a lhe olhar
Ela nada diz
E me diz tanto e tanto
Que eu até me espanto
De tanto escutar

E lá me vou eu agora
Sendo a pedra da história
Ela não procura a glória
Mas a tem sem procurar

Por simplesmente existir
Por receber sol e chuva
Por se entender como é
Sua natureza de pedra
Seu jeito, sua estranheza
Sendo pedra, ou sendo deusa
Não exprime um reclamar

Despeço-me envergonhado
Deixo a pedra ali do lado
Na rua, no campo ou canto
Para ela tanto faz

Vou ao sol que encurta os dias
De um estradar renovado
No caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no caminho
Tropecei no meu destino
A pedra me despertou
Sem nada dizer de amor
De amor fez seu legado.

Roberval Paulo

terça-feira, 11 de agosto de 2020

VOCÊ AQUI! - Roberval Paulo


É você aqui!
Você está aqui comigo
O teu sonho está em minha realidade
Sinto o teu cheiro e o ar que entra pela janela
traz o seu respirar

A sua imagem me chega pela estrela que reluz a vida
O meu amor te alcança e nos diz do amor que é nosso
A noite fria suaviza o roçar do seu rosto
A dor na alma me revela a tua ausência

Sinto você e você não está aqui!
Não entendo o sentir da tua presença
Fecho os olhos e você povoa os meus sonhos.
E, quando me sinto acordar,
a manhã é você em meu olhar triste

Mas o tempo... Ah! Esse tempo
É sempre chegado o tempo do tempo se findar
Tudo no tempo tem o seu próprio tempo
E esse é o tempo do tempo se ir, se acabar.

Seja um dia ou um mês, uma hora ou uma vida
De repente o tempo se vai, no tempo a partir
E quando ele se for, você já será passado
E quando você passar, eu deixarei de existir.

Roberval Paulo

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

MARCAS DE LUZ - Roberval Paulo


São marcas de luz o que o tempo me deu.
Como hoje penso é reflexo desse andar
Como pondero antes de agir e de me posicionar!
Quanta paciência carrego em meu ser.

O ferreiro segue moldando a peça.
A forja é o instrumento e a força um complemento.
O fogo é o próprio alimento que molda o molde pensado.

O ferreiro, a forja e o fogo são elementos do seu caminhar.
Elementos por demais importantes nos dias da sua estrada,
mas pouca atenção lhes damos, pois queremos ser bem mais. 


Mas não, não somos! Definitivamente não somos!
Somos somente a peça; a peça menor de toda uma engrenagem.
Uma engrenagem maior e superior.
Engrenagem essa que se intitula vida

Lutar pela vida é razão e a essa luta vamos com todas as nossas forças.
Ora triunfando e ora despedaçando o nosso existir que é o nosso coração.

Lutar pela vida é bom e, inexoravelmente, espelha o fundamento fundado no SACRAMENTO.
Um sacramento diáfano, resiliente; transluzente e comprazente da nossa 
NOBRE MISSÃO.

Mas lutar contra a vida é tolice, é estultice.
É estupidez pra não dizer burrice;
é quimera e solidão.

A vida é superior e maior, muito maior.
A vida é tudo e é senhora de si.
A vida é o ferreiro, a forja, o fogo.
E você, ah meu Deus, quem é você? 
Quem você pensa que há de ser?

Você é simplesmente e também, singularmente,
a peça viva e importante, mas também, simploriamente,
a peça nobre e comum, tal como pobre e inconstante;
a peça menor no tabuleiro desse jogo.

Roberval Paulo

NOVO PROGRAMA DE VIDA - Roberval Paulo


É necessário! É urgente! Precisamos nos mexer! 
É preciso incutir mesmo no meio da gente a solidariedade. 
Não a solidariedade de mídia, da mídia, da televisão. 
Aquela que mais mostra e se pré-paga do que beneficia. 
Aquela que muito vende e quase nada se compra. 
Que comercializa os produtos pobreza e miséria e não se solidariza com estes.

É urgente uma nova postura; um novo conceito social. 
É de urgência urgentíssima o estabelecimento e estruturação de 
                                                                                  um novo programa de vida. 
Um novo programa de vida que conceitue a sociedade como um todo, digna de um tratamento igualitário pelos governos e por esta mesma sociedade.

Um novo programa de vida que nos faça dar a nós mesmos, 
o respeito que merecemos e que tanto almejamos e necessitamos.

Um novo norte, novo horizonte, novo caminho.
Uma nova visão e uma nova postura.
Um novo ainda mais novo do que o novo que envelheceu em nós.
Um novo que amanheça a paz, a justiça, a solidariedade e a dignidade.

O novo que nos foi apresentado pela boa nova de Cristo, e que nós, 
envelhecidos de novo em velhos e novos conceitos 
e seduzidos pela força do material, 
fomos espiritualmente a envelhecer.

O novo que nos traga de novo
o amor ao próximo e a Deus sobre todas as coisas

O novo
que possa se renovar
a cada manhã
no amor de Cristo!

Roberval Paulo