'Aqui
no sertão se fala é nóis vai, só que quando eu falo nóis vai, nóis vai mermo,
num tem conversa nem enrola. Lá os doutor da tecnologia fala nós vamos e a
gente fica esperando e eles num sai do lugar".
Analisando o ambiente tecnológico no
qual estamos inseridos, rodeados e amparados por um exército de máquinas e
aparelhos em detrimento das ações manuais de coração e de humanização tão
necessárias à disseminação do amor, recorro a uma “oração” – com o perdão da
palavra – que ouvi em um passado não muito distante, lá no interior do meu
lugar, dita por um senhor simples, do povo, semianalfabeto, mas de sabedoria a
botar no bolso os letrados do imediatismo operado e praticado nos dias atuais.
Em conversa com este senhor,
falava-lhe da tecnologia da informação objetivando integra-lo a este ambiente,
mas utilizando um vocabulário que fosse por ele alcançado, abrindo mão dos
termos americanizados que tomaram de arroubo a nossa cultura e a nossa fala,
tornando-se nossos, buscando assim, na minha ingenuidade altruísta, faze-lo
melhor e mais facilmente entender o que lhe estava dizendo.
Eis que o sábio senhor me surpreende
ao olhar-me dentro dos olhos e dizer-me: “Seu Roberval, estudei muito pouco, só
fui na escola pur causa das peia de mãe e foi pouco tempo pois o trabaio num
deixava, então aprendi pouco na escola, mas a vida que levei e levo até hoje me
ensinou tudo que sei. E esse tudo que sei é tão pouco que as veiz eu penso que
num sei é de nada, porque esse negócio de tecnologia eu num alcanço nem dô
nutícia.
Aqui no sertão se fala é nóis vai, só
que quando eu falo nóis vai, nóis vai mermo, num tem conversa nem enrola. Lá os
doutor da tecnologia fala nós vamos e a gente fica esperando e eles num sai do
lugar.
Aqui ó, eu vou na cidade, vendo uns
03 ou 05 gado, uns saco de arroz e de farinha e o homi me paga na hora sem vê
nada. Mais depois ele vai lá em casa buscar no dia que ele quiser porque ele
sabe que é dele, ele comprou e num dá negócio errado ninhum.
Lá na tecnologia os doutor assina
documento, o banco assina, cartório assina tamém e vem umas tar de testemunha e
fiador pra fiar o que num tem e mermo com esse tanto de trem dá tudo errado.
Num paga, dá briga, entra adevogado e o trem fede mais num paga.
Aqui vou na venda de seu Dudim e pego
uns trem e ele anota, até umas pinga e cerveja quando tô mei virado das venta.
Lá tem é uma caderneta de anotar o que nóis compra, pra lembrar né, senão nem
anotava. Meus menino vai lá e pega, minha muié pega e todo mundo lá de casa.
Chegando o fim do mês, vendo uns trem lá do sítio, vou na venda e pago tudo e
vou pegando tudo que quero de novo e num dá encrenca.
Lá os doutor vai na loja e compra num
tar de crediário, cartão, cheque, sei lá o que mais, é tanto jeito de comprar
que num sei e depois a loja cobra, o juro corre, quem vendeu briga, quem
comprou briga e num paga e dá tudo pra trás.
O pulítico vai na televisão e fala
que vai fazer e acontecer, que luta pelo povo e que vai fazer pra nóis o mió, o
que for bom. Depois só vê no jornal é disvio, roubo, uma tar de corrupção, o
fiio desse comprou fazenda, o fii do outro um carrão grande e caro, já vem
outro com dinheiro até nas cueca, onde já se viu? Eles mamando direto e o povo
só chupando sem sair nada. Tá tudo de mudado seu Roberval, esse mundo tá
trapaiado demais, num sei nem mais o que dizer, tá tudo fora do êxo.
Tem um tar de zap zap nos celular de
correr dedo fuxicando mais que língua de sogra. Mais num é da minha sogra não,
que minha sogra é muié boa, é da sogra de outros aí. É tanto fuxico nesse zap
que só vê muié brigando cum marido, gente largando, famia se acabando e por aí
vai. O povo perdeu o tino, tá sem rumo.
A televisão só mostra coisa ruim, é
assalto, morte, traição, fome e a miséria cresceno. Umas igreja aí que salvava
o povo agora só vê pedindo dinheiro e o povo dano e eu num sei pra onde que vai
esse tanto.
O que digo e que boto fé é que quase
num sei de nada, mais no mei dos que sabe muito o errado tá correndo solto e
num tem quem pegue nem chegue perto..
Aqui nesse fim de mundo onde Deus
ainda mora as coisa é diferente. Aqui nóis se baseia é na palavra. É o que nóis
tem que mais vale é a palavra. Se o cabra der pra trás no que ele garantiu, tá
desmoralizado e o homi desmoralizado perde o valor e a confiança. É um sujeito
sem vergonha e tem que viver de cabeça baixa, num dá não.
Esse mundo de hoje tá muito
inteligente pra nóis aqui do sertão entender. Pra num incumpridar mais a
conversa, esse trem de tecnologia eu num sei pra onde vai nem corretivo dô. Pra
mim, aqui com meus botão, esse mundo tá é hidráulico mesmo seu Roberval. Esse
mundo tá hidráulico demais, é isso que penso e tiro ciência.”
Boquiaberto fiquei e boquiaberto
ainda estou. Recebi uma aula de civilidade e de cidadania. Confesso que me
senti envergonhado com tudo que escutei de seu Raimundo. Mas botando fé e
tirando ciência – termos do vocabulário de seu Raimundo – ele, que diz quase de
nada saber, sabe muito mais do que muitos de nós. Sabe muito mais do que eu e,
na sua sabedoria interiorana e sertaneja, fez-me compreender que a honra e a
dignidade e ainda a moral são atributos Divinos herdados por nós e por nós
devem ser cultivados e mantidos, assegurados, sejam quais forem as situações
vivenciadas e enfrentadas.
Enfim, trazendo para o nosso viver a
nobre vivência de seu Raimundo, replico: sejam quais forem as circunstâncias,
não se corrompas e, em ti, não serás corrompido. Esta foi a lição que recebi de
seu Raimundo e busco leva-la para a vida toda.
Roberval Paulo
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