sexta-feira, 19 de julho de 2019

IRMÃOS DE SANGUE SÃO MAIS IRMÃOS - Roberval Paulo


Gracindino era daqueles que a ninguém ofendia. Sujeito pacato, cidadão do bem. De alta estatura, esguio e curvado, rosto sulcado, de feição avermelhada e clara e cabelos levemente encaracolados e curtos. Vivia às voltas com seus vícios; o famigerado álcool, a boemia e mulheres. Como já frisado, não era de ofender a ninguém seriamente, mas tinha bastante curto o estopim e não dispensava uma boa troca de murros quando em seus momentos de embriaguez. Se algum mal cometia, era a si mesmo e, consequentemente, à família, que vivia em preocupação constante com a sua boemia.

Deixo de lado Gracindino para cuidar da descrição de Alceste, seu irmão mais velho. Não tão esguio quanto Gracindino, mas em mesma estatura e feição, filhos de mesmo pai e mesma mãe, portanto, muito parecidos. A diferença entre estes irmãos, fisicamente tão parecidos, estava na postura e comportamento. Alceste, como todo jovem, teve seus momentos de boemia e bebidas, mas por um curto espaço de tempo. Casou-se cedo, convertendo-se ao protestantismo e em pouco tempo consagrava-se Pastor. Família constituída, sendo a esposa e um casal de filhos. Uma vida centrada na oração e no cuidado ministerial com a sua igreja e seus membros, saindo do sério somente quando tinha que posicionar-se em razão das confusões criadas pelo irmão Gracindino, o que ocorria com certa frequência.

Coração é coração e sangue é mais ainda e, quando se via confrontado pelas situações protagonizadas por Gracindino, sentia na pele e na alma a dificuldade de posicionar-se contra o irmão, mesmo considerando ou atestando a sua culpabilidade. Entrava em tom conciliador buscando aparar arestas. Conversava, relevava, atenuava, mas, de repente, o sangue falava mais alto e ele modificava-se por inteiro, saindo em defesa do irmão e, por muitas vezes, indo aos finalmente, às vias de fato. Não foram poucas as vezes que o burburinho espalhava-se pela cidade de que o Pastor Alceste estava em uma confusão ou numa briga e, como era pequena a cidade, tomava grande repercussão a conversa repetida boca a boca, trazendo consequência, por vezes, até moral ao nobre e digno Pastor Alceste. Mas, por outro lado, eram muitos os que o defendiam, reconhecendo nele a força do lastro familiar, pois, no frigir dos ovos, mesmo diante das circunstâncias, saía sempre em defesa do irmão, da família. Era o sangue reclamando.

Essas ocorrências, ainda que repetidas por um longo espaço de tempo, não produzia efeitos negativos à reputação de Alceste e pasmem, nem tão pouco à de Gracindino, pois todos os conheciam e muito bem. De família íntegra, defensora dos bons modos e costumes, de comportamento reto e ético sempre, logo que passada a situação vexatória e reparados os erros, todos reconheciam a figura reta do Pastor e pai de família Alceste e de mesmo modo, a do cidadão e homem de bem Gracindino, somente um boêmio inveterado.

Para apreciação e deleite do leitor, relato aqui um episódio protagonizado por Gracindino e, como de costume, arrematado por Alceste, o irmão pastor. Numa noite, já por volta das 22h00min horas, depois de ter tomado todas e mais algumas em sua confraternização quase que rotineira, Gracindino, despedindo-se dos amigos de confraria e de cruz, deixa para trás o bar, tomando a direção de casa. Ora assoviando, ora cantando, envereda-se por um atalho tencionando encurtar o caminho, afadigado pelo peso dos tantos goles degustados. Eis que o previsível acontece; vê-se cercado, em uma curva do caminho, por um grupamento de cinco elementos que já o vigiavam a distância e agora buscam acerto de contas em homenagem a umas tapas desferidas por Gracindino há uns dias atrás em um dos integrantes do grupo. Gracindino vê-se em desvantagem, mas não arrega; era adepto e frequentador assíduo da boa troca de murros e, diga-se de passagem, era um trocador dos bons.

Estaciono aqui por um momento a narrativa para refletir e rememorar. Que tempo saudoso este, pois era assim que a maioria dos entraves e agravos resolviam-se, sem a necessidade de armas. Uns murros aqui, outros ali, umas quedas, alguns arranhões e todos iam pra suas casas com suas marcas e em paz. E no outro dia a cidade estava cheia do acontecido, sendo noticiado em todo canto e com alegria pelos repórteres amadores de plantão, diga-se, em termo popular, os fofoqueiros.

Pois bem, Gracindino não arrega e a confusão está feita. Começam os insultos, a troca de farpas, recheados de não tão nobres palavras e, enfim, as acusações. Eu lhe pego; você vai me pagar; de agora não passa; isso você não vai mais fazer e assim segue a arenga, esboçada em empurrões. Um garoto em sua bicicleta, passando pelo local, vê a contenda e corre a dar notícias do ocorrido ao irmão Alceste que, há esta hora, finalizava a pregação aos fiéis na igreja, de paletó e gravata. O garoto adentra a igreja correndo e anuncia, em alto e bom som que Gracindino está em contenda e que se encontra em desvantagem, pois são cinco contra um. Conta tudo a Alceste, quase pedindo intervenção.

Não carecia nem intervenção pedir. Digerindo a notícia rapidamente, lá estava Alceste bradando seu amém aos fiéis e deixando para trás a Bíblia, saindo em disparada ao socorro do irmão. Ao apontar na esquina, a cena vista não é amena. Lá está Gracindino engalfinhado em luta com cinco oponentes. Golpe certeiro que vai contra muitos que voltam, tal a quantidade de mãos e pés envolvidos. Cena que passaria em branco ao coração do pastor, mas que fere e atinge em cheio o coração do irmão. Não houve conversa nem ponderação e lá está Alceste e Gracindino botando pra correr não menos que cinco não simpatizantes, a custa de murros e pescoções. O pastor mais uma vez é mais irmão. Gracindino é levado para casa pelo irmão e lá, em quatro paredes, o pastor diz todas a Gracindino; ele pode e deve, mas aceitar outro agredi-lo, isso não.

Em outra ocasião, estava Gracindino em um bordel, como era o seu costume e, como sempre, aprontando das suas. Já alto pelo fogo da bebida, saca de uma arma e desfere uns tiros para cima. Foi terrível o burburinho. Uns se apertam nas portas buscando saída ao mesmo tempo, outros saltam pelas janelas. Alguns se escondem embaixo das mesas ou pelos cantos e alguém grita ao telefone: polícia! Gracindino está só no salão, arrodeado por algumas “meninas” que já o conheciam. Ele pede mais uma bebida e, sentando-se, põe em cada perna uma garota, vangloriando-se do feito.

Eis que de repente a viatura risca na entrada e saltam dois policiais dispostos a dar fim ao episódio. Da porta gritam as palavras de ordem, ou seja, a voz de prisão: “Têje” preso Gracindino. Era o soldado Camelo, acompanhado do parceiro Adnero. Gracindino, como estava, ficou. Sentado lá nos fundos do salão, uma moça em cada perna e de costas para a porta. A voz soa novamente, dita pelo soldado Camelo: “Têje” preso Gracindino!

Gracindino conhece a voz. Sentado estava, sentado ficou. Sacando da arma presa à cintura, vira o braço imediatamente e vocifera: Oh! Camelo, eu estava mesmo querendo lhe ver; “tava” doido pra lhe dar um tiro na testa. Simultaneamente à voz, o tiro é disparado e acerta o umbral da porta. Camelo e Adnero, pegos de surpresa, gritam um valha-me Deus e afastam-se correndo, deixando para trás a viatura. Neste momento, já avisado por terceiros, Alceste, o pastor, adentra o salão. Surpresa no rosto de todos; não é o local mais adequado para um pastor. Mas o irmão está lá e precisa de socorro, tudo explicado.

Gracindino mais uma vez é convencido e conduzido para casa pelo seu protetor. Ouvirá um monte com certeza e obediente ao irmão que é, nada responderá e dará descanso por um período, curto período.

Os irmãos mais uma vez roubam a cena e são notícia de primeira página no agudo boca a boca do interior e lá se vai o pastor Alceste se explicar com a cidade, com os fiéis e com os policiais destratados e amigos. Tudo resolvido. A rotina volta ao normal na pacata cidadezinha. A bocas pequenas e ao som de boas gargalhadas corre o assunto dos dias seguintes, todos aguardando a próxima de Gracindino. É quando a cidade de fato se movimenta e todos tem muito o que dizer.

Roberval Paulo

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