quarta-feira, 16 de agosto de 2017

NO ESTRADAR DA INFÂNCIA - Roberval Paulo

Escrevi este meu sonho antes da noite acordar
Um sonho verde e vermelho mergulhado em sangue e tinta
Recordei a minha casa numa solidão retinta
A mocidade chegando pela porta do lembrar

E acordei quase sem eu, sem já ser eu, que desalento
Assim, misturando eu comigo, angustiado
Pus a mente lá distante a buscar os meus lembrados
Tanto fui longe que perdi meus pensamentos

Desalentado naveguei no meu sonho acarvonado
Onde deixei tanto riso e tanto sonho que nem sei
E nos dias já passados eu com medo cavuquei
O medo de perder o que nunca foi achado

Busquei o velho baú da mente dos meus guardados
Afugentei a poeira libertando a memória
E a caneta na mão e a mão e os olhos na história
Comecei a estradar a estrada do meu passado

No horizonte à distância do olhar, tudo ofuscado
Um verde desbotado se via lá no fim do mar
E era tanta légua e água o meu sonho a matizar
Que os meus olhos, meu caminho fez-se todo enluarado

Retornando ao começo da origem originada
Onde a saudosa saudade fez parar a consciência
Vi o terreiro e os laranjais no quintal da inocência
A rede embalançando uma paisagem aurorada

Disanuviando a nuvem que encobria minha lembrança
Disseminando o pensamento para além da serrania
Na nascente da tristeza eu vi brotar a alegria
E no verde ensangüentado descortinou a esperança

Rememorei tanta vida que eu vivi e nem lembrava
De minha mãe, seu riso terno e a máquina de costura
Noite adentro a costurar. De meu pai a formosura
A postura e a firmeza que minh’alma acalentava

E já outros dormidos no meu sonho perpassava
Na estrada o meu avô e o seu canto boiadeiro
O meu pai, a minha mãe e eu menino no terreiro
Perseguindo as borboletas, fazendo aquela algazarra

E os meus irmãos na caminhada a caminho da ribeira
Saltitantes, só meninos nas meninices da vida
Vagueando com os vagalumes à luz da fonte garrida
Borboleteando ao vento uma ciranda alvissareira

O rio da minha infância que aguacento me abraçava
E me espraiava em sua praia de areia algodoada
E me cantava as cantigas com sua voz aveludada
Rumorejando e levando meu ser que desabrochava

Era uma tarde de chuva, o horizonte escurecia
E a enxurrada na rua, cautelosa escorregava
E foi levando o meu tudo e fiquei só com o meu nada
E no espelho da memória desencantou a fantasia

Era ainda uma tarde nebulosa e atormentada
E o meu sonho, esfriado, noite adentro viajava
E a encontrar o inevitável todo o meu ser caminhava
E aquela ponte intransponível outra vez fechava a estrada

Ah! Se eu tivesse asas. Se as tivesse, eu voava
E no assombroso vazio do espaço eu reluzia
E todas as minhas noites eu clareava com dias
Para acordar o meu sonho em manhã ensolarada

Ficou desse tempo a dor de não poder nele voltar
Revive a alma a alegria cada recorte lembrado
As lágrimas caem do sonho p’ro real imaginado
E a rede embala o homem desse menino luar.

Roberval Paulo

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