CRÔNICAS & CAUSOS
Aconteceu no estacionamento de um shopping. Era domingo, tarde de
domingo, ocasião em que os shoppings estão cheios. O estacionamento nem se
fala. Parece mais congestionamento da Avenida Brasil e Marginal Tietê, juntas.
O sol flutuava majestoso num céu claro de azul distante e já descambava para o
poente, anunciando o crepúsculo com seus efeitos áureos e enfumaçados. Na
terra, outro crepúsculo. O da correria da humanidade. Formigas desesperadas, em
todas as direções, sem destino certo. Correr por correr. Comer pipocas, tomar
sorvetes, cervejas; beliscar, patinar, faz-se tudo. Cinema! Ah! Cinema nas
tardes de domingo; nada mais romântico. Correria total! Aventureiros e
exploradores, sem eira nem beira, dos prazeres da vida. Do bom bate papo, do
entretenimento, do descanso e do sossego. Da novidade das caras novas, do
flerte. Do lazer da família em busca da paz tão sonhada do fim de semana, nessa
bagunça infernal. Caos! Tudo em movimento, tudo anda, ou melhor, corre. Até os
seres inanimados das lojas e vitrines parecem adquirir vida.
É tanta confusão e magia que até me perdi no texto. O que eu queria
mesmo era contar um episódio que se deu no estacionamento de um shopping, numa
tarde de domingo e, perdido em meio à multidão, acabei aderindo à confusão e
correria dos shoppings nos fins de semana.
Bem, vamos ao fato; agora ele acontece. Carros passeiam entre as
filas à procura de vagas, perfilados como um pelotão de soldados, não
necessariamente naquela mesma ordem. Uns entrando, outros saindo, buzinando,
aguardando. Foi aí que se deu o já anunciado acontecimento.
Uma camioneta último tipo caminhava inquieta e nervosa por entre seus
colegas, à procura de um espaço para descansar seu designer perfeito e tão
harmoniosamente disposto sobre suas quatro rodas, reluzentes e imponentes,
levando em seu interior um cidadão de meia idade, não tão último tipo quanto
ela, "a camioneta", mas considerado um bom partido entre as moças
casadoiras.
Não muito distante dali, um pouco mais atrás, um fusquinha ano 67,
desesperado e ofegante da tão longa jornada e já gasto pelas marcas do
trânsito, garimpava um espaço para repousar sua maltratada estrutura
que vinha gemendo e grunhindo, mal agasalhado que estava em cima daquelas
quatro rodas tão bem desfiguradas, levando em seu lado de dentro uma senhora já
na melhor idade, – aquela mais perto do outro lado – de óculos, feições gastas
pelo tempo, mas conservando em seu semblante aquele longínquo arzinho de garota
levada.
Eis que de repente a camioneta passa por um espaço em aberto, de onde
acabava de sair o próprio Henry Ford. Num grito de triunfo e mais que depressa,
pisa no breque, liga a seta e engrena marcha a ré e, já em movimento contrário,
procurando o retrovisor para se orientar, dá de cara, ou melhor, de costas com
o fusquinha que, numa manobra digna de um fórmula um, arremete-se ao
espaço a pouco vago, fazendo-o seu, deixando desolada a camioneta que
vislumbrara primeiro essa tão disputada e singular vaga.
O condutor da camioneta aciona o freio de mão, apeia, caminha na direção
do fusquinha dirigindo-se à velha senhora. Argumenta e reclama, porém,
elegantemente.
– Minha senhora, a vaga era minha, eu vi primeiro. Não foi correta a sua
atitude.
A senhora olha de soslaio para o cavalheiro e num ar de deboche,
sentindo-se vitoriosa, arremata.
– O mundo é dos mais espertos doutor.
– Mas... –redarguiu o senhor, no que foi interrompido.
–Não tem mais nem meio mais doutor; o mundo é dos mais espertos.
O cavalheiro, boquiaberto, parece não acreditar no que acaba de ouvir.
Sem palavras para responder, perde as estribeiras, deixa de lado a razão. Dá
meia volta e entra na camioneta, nervosa. Fazendo roncar o motor, promove uma
ousada manobra e projeta-se na direção do fusquinha que, descansado e
desprevenido, não teve forças nem tempo para reagir. O choque foi forte. Um
estrondar bombástico e o fusquinha está despedaçado, partido ao meio. Um
amontoado de lata e ferro retorcidos.
A camioneta faz nova manobra, parando ao lado do fusquinha e da velhinha,
e seu condutor, botando fogo pelas ventas e com a raiva de mil siris em latão
de água fervente, dispara em gritos.
– O mundo não é dos mais espertos não minha senhora. O mundo é dos que
tem dinheiro.
Faz um ligeiro aceno de mão e arranca a toda velocidade, deixando para
trás uma mistura em resíduos de asfalto e óleo no olhar assombrado e
espantado da pobre senhora que, incrédula, olha desesperada o monte de ferro e
lata que há segundos atrás era a sua condução. Lágrimas de esperteza e ferrugem
se unem num chorar tão doído que nem o arrependimento duo, de velha e de fusca,
é capaz de conter.
Dois corações marcados pelo tempo e pelo trânsito, recebendo da vida,
ainda que tardio, a lição de que, mesmo na urgência ou necessidade, a
humildade e o respeito ao direito do outro devem prevalecer, sendo estes a tônica
para o entendimento, evitando assim o risco da desonra e da humilhação.
Roberval Paulo
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