Foto: Arthur to
Aliança do Tocantins, cidade cravada no centro-sul do estado do Tocantins, porém bem mais povoada e influenciada pelo povo da banda do norte/nordeste, carrega em suas ruas e calçadas todos os jeitos e gostos das gentes de lá. Cortada bem ao meio pela BR 153, na altura do quilômetro 646, com pouco mais de cinco mil habitantes, é quase a “Cidadezinha qualquer” de Carlos Drummond de Andrade, com tudo indo bem devagar. Povoado formado quando do rasgo rodoviário aberto no coração e veia central do Brasil, nas obras da BR 153 do governo Juscelino Kubitschek, atraindo um grande número de migrantes vindos principalmente do Maranhão à busca de novos ares. Cidade comum de gente comum, em sua maioria de sertanejos, dito aqui na mais nobre acepção da palavra. Pessoas estas de hábitos e costumes simples como os seus lugares.
Cidade de tantos e quantos, como também cidade do senhor Pedro Querosene,
alcunha que recebeu quando de um tombo com direito a banho de querosene em
razão de excesso no gole. Cidadão forjado em homem no labutar simples da roça,
à custa de foice e enxada, de ordem e suor, de disciplina e responsabilidade,
valores estes encrustados no existir das gentes do sertão. Acometido da perda
de visão em razão de glaucoma que não perdoa nem olhos mais abastados do
capitalismo, não se dobrou a enfermidade, mantendo sua independência e locomoção
por tudo quanto é canto sozinho e com alegria.
Pois sim, traçando um perfil do senhor Pedro Querosene: homem
esguio, estatura mediana, moreno claro, cabelos encaracolados e curtos, rosto
sulcado de feição sofrida, enfim, o típico “caboclo do sertão e excluído da
república” como bem definiu Euclides da Cunha em Os Sertões. No mesmo tempo que
expõe a rudeza e simplicidade no falar, carrega em si o dicionário e
vocabulário do anedotário sertanejo, exprimindo uma sagacidade e alegria que
contagia quem se dispõe um pouco a compartilhar de sua companhia. Melhor do que
caracteriza-lo e enche-lo de adjetivos é contar um episódio deste emblemático
cidadão.
Certa feita, lá pelas tantas da tarde, já com sintomas de noite,
datando-se por meados do ano de 2015, estava eu a refrescar-me com uma gelada
no bar do Raimundo de Gregório, no Jardim Aliança, quando ouço o pisar e falar
de Pedro Querosene, cego e sozinho, atravessando a rua, indo como que
teleguiado em direção ao bar onde eu estava absorto no aguerrido exercício de
copo.
Resmungando alto e tocando seu bastão à frente para guiar os seus
passos, deu de esbarrar no veículo estacionado defronte ao bar. Compadecendo-me
da situação, a ele me dirigi com o intuito de ajuda-lo na tarefa empreendida
rumo ao balcão. Dava mostras de que alguma já havia ingerido e me pegou de
conversa como se de longo me conhecesse, numa amizade e liberdade existentes só
nas almas de todo desarmadas.
Contou-me alguns infortúnios; dentre estes, o drama da perda da
visão, porém sem se lamuriar, quase que agradecendo, pois, graças a este
infortúnio, como ele mesmo disse, – “consegui o meu aposento”. Falou-me dos
dias de roçado, estendendo-me as mãos calejadas e o quanto já trabalhou pela – “dignidade
do Brasil” – palavras dele.
Disse-me do casamento, dos filhos, da separação e da atual mulher,
razão ainda dos seus rompantes e levantes de homem, porém sem conseguir
disfarçar uma preocupação com o comportamento desta que muito gosta de sair por
aí e é amante também de uma boa cangibrina. Ao referir-se a ela, veio-lhe de
súbito uma raiva evidenciando o quanto dela tem ciúme, lançando a ela alguns
adjetivos que me furto aqui revelar. Varamos a noite no assunto passional,
regado a goles e gargalhadas e no resmungar característico de Pedro.
Despedimos-nos refeitos e com glórias do labutar inglório e Pedro partiu.
Lamentavelmente Pedro Querosene não está mais entre nós e suas
alegres e soltas palavras não mais ressoarão aos nossos ouvidos a não ser pela
memória. Mas, no plano que estiver, estará reluzindo o seu doce existir.
Roberval Paulo
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