Gracindino
era daqueles que a ninguém ofendia. Sujeito pacato, cidadão do bem. De alta
estatura, esguio e curvado, rosto sulcado, de feição avermelhada e clara e
cabelos levemente encaracolados e curtos. Vivia às voltas com seus vícios; o
famigerado álcool, a boemia e mulheres. Como já frisado, não era de ofender a
ninguém seriamente, mas tinha bastante curto o estopim e não dispensava uma boa
troca de murros quando em seus momentos de embriaguez. Se algum mal cometia,
era a si mesmo e, consequentemente, à família, que vivia em preocupação
constante com a sua boemia.
Deixo
de lado Gracindino para cuidar da descrição de Alceste, seu irmão mais velho.
Não tão esguio quanto Gracindino, mas em mesma estatura e feição, filhos de
mesmo pai e mesma mãe, portanto, muito parecidos. A diferença entre estes
irmãos, fisicamente tão parecidos, estava na postura e comportamento. Alceste,
como todo jovem, teve seus momentos de boemia e bebidas, mas por um curto
espaço de tempo. Casou-se cedo, convertendo-se ao protestantismo e em pouco
tempo consagrava-se Pastor. Família constituída, sendo a esposa e um casal de
filhos. Uma vida centrada na oração e no cuidado ministerial com a sua igreja e
seus membros, saindo do sério somente quando tinha que posicionar-se em razão
das confusões criadas pelo irmão Gracindino, o que ocorria com certa
frequência.
Coração
é coração e sangue é mais ainda e, quando se via confrontado pelas situações
protagonizadas por Gracindino, sentia na pele e na alma a dificuldade de
posicionar-se contra o irmão, mesmo considerando ou atestando a sua
culpabilidade. Entrava em tom conciliador buscando aparar arestas. Conversava,
relevava, atenuava, mas, de repente, o sangue falava mais alto e ele
modificava-se por inteiro, saindo em defesa do irmão e, por muitas vezes, indo aos
finalmente, às vias de fato. Não foram poucas as vezes que o burburinho
espalhava-se pela cidade de que o Pastor Alceste estava em uma confusão ou numa
briga e, como era pequena a cidade, tomava grande repercussão a conversa
repetida boca a boca, trazendo consequência, por vezes, até moral ao nobre e
digno Pastor Alceste. Mas, por outro lado, eram muitos os que o defendiam,
reconhecendo nele a força do lastro familiar, pois, no frigir dos ovos, mesmo
diante das circunstâncias, saía sempre em defesa do irmão, da família. Era o
sangue reclamando.
Essas
ocorrências, ainda que repetidas por um longo espaço de tempo, não produzia
efeitos negativos à reputação de Alceste e pasmem, nem tão pouco à de Gracindino,
pois todos os conheciam e muito bem. De família íntegra, defensora dos bons
modos e costumes, de comportamento reto e ético sempre, logo que passada a
situação vexatória e reparados os erros, todos reconheciam a figura reta do
Pastor e pai de família Alceste e de mesmo modo, a do cidadão e homem de bem Gracindino,
somente um boêmio inveterado.
Para
apreciação e deleite do leitor, relato aqui um episódio protagonizado por Gracindino
e, como de costume, arrematado por Alceste, o irmão pastor. Numa noite, já por
volta das 22h00min horas, depois de ter tomado todas e mais algumas em sua
confraternização quase que rotineira, Gracindino, despedindo-se dos amigos de
confraria e de cruz, deixa para trás o bar, tomando a direção de casa. Ora
assoviando, ora cantando, envereda-se por um atalho tencionando encurtar o
caminho, afadigado pelo peso dos tantos goles degustados. Eis que o previsível
acontece; vê-se cercado, em uma curva do caminho, por um grupamento de cinco
elementos que já o vigiavam a distância e agora buscam acerto de contas em
homenagem a umas tapas desferidas por Gracindino há uns dias atrás em um dos
integrantes do grupo. Gracindino vê-se em desvantagem, mas não arrega; era
adepto e frequentador assíduo da boa troca de murros e, diga-se de passagem,
era um trocador dos bons.
Estaciono
aqui por um momento a narrativa para refletir e rememorar. Que tempo saudoso
este, pois era assim que a maioria dos entraves e agravos resolviam-se, sem a
necessidade de armas. Uns murros aqui, outros ali, umas quedas, alguns
arranhões e todos iam pra suas casas com suas marcas e em paz. E no outro dia a
cidade estava cheia do acontecido, sendo noticiado em todo canto e com alegria pelos
repórteres amadores de plantão, diga-se, em termo popular, os fofoqueiros.
Pois
bem, Gracindino não arrega e a confusão está feita. Começam os insultos, a
troca de farpas, recheados de não tão nobres palavras e, enfim, as acusações.
Eu lhe pego; você vai me pagar; de agora não passa; isso você não vai mais fazer
e assim segue a arenga, esboçada em empurrões. Um garoto em sua bicicleta,
passando pelo local, vê a contenda e corre a dar notícias do ocorrido ao irmão
Alceste que, há esta hora, finalizava a pregação aos fiéis na igreja, de paletó
e gravata. O garoto adentra a igreja correndo e anuncia, em alto e bom som que
Gracindino está em contenda e que se encontra em desvantagem, pois são cinco
contra um. Conta tudo a Alceste, quase pedindo intervenção.
Não
carecia nem intervenção pedir. Digerindo a notícia rapidamente, lá estava Alceste
bradando seu amém aos fiéis e deixando para trás a Bíblia, saindo em disparada
ao socorro do irmão. Ao apontar na esquina, a cena vista não é amena. Lá está Gracindino
engalfinhado em luta com cinco oponentes. Golpe certeiro que vai contra muitos
que voltam, tal a quantidade de mãos e pés envolvidos. Cena que passaria em
branco ao coração do pastor, mas que fere e atinge em cheio o coração do irmão.
Não houve conversa nem ponderação e lá está Alceste e Gracindino botando pra
correr não menos que cinco não simpatizantes, a custa de murros e pescoções. O
pastor mais uma vez é mais irmão. Gracindino é levado para casa pelo irmão e
lá, em quatro paredes, o pastor diz todas a Gracindino; ele pode e deve, mas
aceitar outro agredi-lo, isso não.
Em
outra ocasião, estava Gracindino em um bordel, como era o seu costume e, como
sempre, aprontando das suas. Já alto pelo fogo da bebida, saca de uma arma e
desfere uns tiros para cima. Foi terrível o burburinho. Uns se apertam nas
portas buscando saída ao mesmo tempo, outros saltam pelas janelas. Alguns se
escondem embaixo das mesas ou pelos cantos e alguém grita ao telefone: polícia!
Gracindino está só no salão, arrodeado por algumas “meninas” que já o
conheciam. Ele pede mais uma bebida e, sentando-se, põe em cada perna uma
garota, vangloriando-se do feito.
Eis
que de repente a viatura risca na entrada e saltam dois policiais dispostos a
dar fim ao episódio. Da porta gritam as palavras de ordem, ou seja, a voz de
prisão: “Têje” preso Gracindino. Era o soldado Camelo, acompanhado do parceiro Adnero.
Gracindino, como estava, ficou. Sentado lá nos fundos do salão, uma moça em
cada perna e de costas para a porta. A voz soa novamente, dita pelo soldado Camelo:
“Têje” preso Gracindino!
Gracindino
conhece a voz. Sentado estava, sentado ficou. Sacando da arma presa à cintura,
vira o braço imediatamente e vocifera: Oh! Camelo, eu estava mesmo querendo lhe
ver; “tava” doido pra lhe dar um tiro na testa. Simultaneamente à voz, o tiro é
disparado e acerta o umbral da porta. Camelo e Adnero, pegos de surpresa, gritam
um valha-me Deus e afastam-se correndo, deixando para trás a viatura. Neste
momento, já avisado por terceiros, Alceste, o pastor, adentra o salão. Surpresa
no rosto de todos; não é o local mais adequado para um pastor. Mas o irmão está
lá e precisa de socorro, tudo explicado.
Gracindino
mais uma vez é convencido e conduzido para casa pelo seu protetor. Ouvirá um
monte com certeza e obediente ao irmão que é, nada responderá e dará descanso
por um período, curto período.
Os
irmãos mais uma vez roubam a cena e são notícia de primeira página no agudo
boca a boca do interior e lá se vai o pastor Alceste se explicar com a cidade,
com os fiéis e com os policiais destratados e amigos. Tudo resolvido. A rotina
volta ao normal na pacata cidadezinha. A bocas pequenas e ao som de boas
gargalhadas corre o assunto dos dias seguintes, todos aguardando a próxima de Gracindino.
É quando a cidade de fato se movimenta e todos tem muito o que dizer.
Roberval
Paulo