Jornal do Tocantins
CRÔNICAS & CAUSOS
A noite
que não era pra fantasma
“Como já era noite, o ambiente mal iluminado
e regado a cheiro de álcool e fumaça estava lotado.”
31/08/2020 – 06:11
Roberval
Paulo - Poeta
Era por volta das dez horas da noite e um
vento rarefeito e cortante rasgava o nevoeiro de um céu pouco estrelado,
incógnito e embaciado por espessas nuvens, trazendo um aspecto quase que fantasmagórico
à paisagem. Pessoas conversavam e sorriam nas portas da principal rua da
pequena cidade, alheias às intempéries e transmutações do tempo. Crianças
brincavam e corriam descalças e desnudas no sobe e desce da rua enladeirada,
iluminada por parcas e opacas lâmpadas, penduradas em postes de madeira roliça
e mal talhada, dispostos uns dos outros à distância de formar sombra entre uma
e outra, emprestando ao cenário um visual ainda mais desolador e meio que mal
assombrado, mas que em nada incomodava ou amedrontava os seus moradores, que em
total tranquilidade e paz, regozijavam-se em doces e sonoras gargalhadas,
espalhados pelas portas e janelas nas tradicionais e enriquecedoras noites do
povoado.
Lá no final desta rua principal, depois de
subidas e descidas e de uma curva acentuada para a esquerda que engolia na sua
volta toda a visão da cidade, abria-se uma rua secundária. Rua estreita, em
blocos de pedras dispostos à mão, com piso altamente irregular, acentuando a
irregularidade a quanto mais se avançava pela rua, parece que no claro intento
a desacelerar o ânimo e a marcha do transeunte, levando-o, quase que obrigado,
a promover parada na única bodega da localidade.
Era um prédio caiado à moda das outras
edificações do povoado. Paredes embolsadas em barro e cal e parte com adobes à
mostra, dispondo de duas largas e desfiguradas portas a facilitar a entrada. Salão
retangular, balcão ao lado e à direita de quem entra a vigiar a saída e mesas e
cadeiras espalhadas sem forma. Atrás do balcão uma prateleira de madeira feita
a mão e pregada à parede, onde se via quase todo o estoque de mercadorias da
bodega: algumas dúzias de garrafas e aguardentes em infusões de todos os gostos,
de ervas medicamentosas às de curar mal olhado, segundo a ciência popular; secos
e molhados em geral, biscoitos sortidos de sal e doce, fumo de rolo e outras
tantas quinquilharias de consumo urgente da freguesia. O balcão decorado pela
doceira carrossel, repleta de balas, chicletes e pirulitos; a tradicional
balança de pratos e um calhamaço de papel de embrulho descansando sob uma pedra
rústica e disforme que ali servia de peso, intimidando a ação forte do vento,
que, arrepiante, soprava. Completando o cenário, sacas de cereais espalhadas,
em grande quantia, para venda a granel.
No espaço compreendido entre o balcão e a
prateleira estava sempre Zé de Nicanor, o proprietário da bodega, a atender a
freguesia do mercado, como também os amantes das noites de bar. Como já era
noite, o ambiente mal iluminado e regado a cheiro de álcool e fumaça estava
lotado. Uns contavam piadas, outros reclamavam; uns lamuriavam-se pela
incompreensão da mulher enquanto que um outro, tirado a poeta, dizia da
ingratidão do mundo com a existência humana, de modo que ali todos se davam ao
momento e se esqueciam da batalha do dia a dia pela sobrevivência e seus
consequentes agregados.
Na mesa ao lado do balcão por onde o público obrigatoriamente
trafegava ao adentrar o bar estavam Biliu de Bastião e Chico de Martinha em
conversação que não vencia. Entre um e outro gole, ânimos já alterados, cada
qual mais valente e atrevido, lançavam as mais absurdas propostas e desafios de
toda sorte, buscando um sobrepor-se à matreirice do outro, no que atraía a
atenção total de todos para a mesa, arrancando gargalhadas a fio e estimulando
algumas apostas.
Num repente, Biliu de Bastião, sentindo-se
acuado e acossado pelo amigo, desafia Chico de Martinha e em alto e bom som
grita.
— Você num tem coragem não cabra, você tem mermo
é muita gabolice ora.
Chico, sentindo-se ofendido, não se dá por
vencido e retruca:
— Mair num tô dizendo mermo. Pelo que sei
frouxo aqui é você. Fique sabendo que eu até mei primo de Lampião sou viu e só
num fui pro cangaço com ele porque mãe num deixou.
A plateia grita e aplaude. A essa altura, os
presentes da bodega deixam por um tempo suas lamúrias e queixas e formam um
círculo em volta dos contendores, manifestando-se em coro a cada nova investida
dos tais.
— Ara sô, olha o que diz o mequetrefe. Quer
ver que tu num tem coragem? Aposto cem conto de réis que tu num tem — Diz
Biliu.
— Aposta que vem é aposta que vai, tá valendo
então. Manda aí macho — Responde Chico.
— Pois tá, tu é de coragem mermo é? Então bom.
Quero ver você ir agora no cemitério e catar uma cruz da catacumba e trazer
aqui ó. É cem contos de réis a aposta. Tu num diz que é de coragem — Desafia
Biliu.
Chico dá uma boa gargalhada e diz — Pensei
que era desafio de coragem rapaz, isso aí é café pequeno pra mim —Torna a gargalhar
e completa — Põe o dinheiro da aposta na mão aí de Zé Lagoa que eu já tô saindo
e já já tô aqui de volta todo de cruz nas costas — Faz um gesto de mugango e o
sinal da cruz simultâneos à finalização da frase e sai a passo ligeiro rumo ao
cemitério sob os olhares da plateia estupefata e em tenebroso silêncio.
Lembrando que a esta altura, o relógio já
batia pra mais de onze horas, aproximando-se da meia noite, hora do mistério
noturno. Eis que com a saída de Chico rumo ao cemitério à cata da cruz, objeto
da terrível aposta, deixando para trás todos os presentes apreensivos e ao
mesmo tempo eufóricos, o volume das apostas só aumenta e o conversê toma corpo
com todos falando ao mesmo tempo e apostando. Entre um grito e outro de crença
ou descrença na volta de Chico com a cruz, Biliu disfarça daqui e dali e
sorrateiramente deixa o local sem ser percebido.
Tomando a passos largos o caminho de casa e
entrando em ponta de pé para não ser visto, lança mão de um enorme lençol
branco e pega imediatamente um atalho rumo ao cemitério, arquitetando pregar
uma peça no corajoso Chico que a esta altura devia estar às voltas de realizar
seu assombroso encontro com a cruz. Cobrindo-se com o lençol e ajustando dois
furos para descobrir os olhos, põe-se de prontidão na porta do cemitério e,
oculto pela noite escura, fica o fantasma à espreita e espera do amigo,
intentando dar-lhe um susto e ganhar a aposta. Ali, com mais medo que espera, o
tempo parece não passar.
Eis que em meio à penumbra, surge no corredor
central do cemitério o amigo ombreando uma cruz pra lá de pesada, em total
tranquilidade. Ao deixa-lo aproximar-se bem, Biliu fantasma levanta-se e emite
aquele grito de fantasma, acreditando na carreira certa de Chico. Qual o quê!
Chico, corajoso que nem mãe em defesa da cria,
ao invés de correr, investe sobre o fantasma com toda a ira da noite e de suas
vidas passadas. O fantasma, surpreendido, sai de carreira com lençol e tudo. Chico
quebra no joelho o braço da cruz e dá no lombo do fantasma ao mesmo tempo em
que grita.
— Eita que hoje fantasma apanha mais num
perdo meus cem. Fantasma hoje mostra se tem sangue ou se voa — E lapiada que
come nas costas do fantasma, que, não aguentando mais, grita para o valente.
— Chico, sou eu, Biliu, seu amigo. Num me
bata mais não. Já tô de costas quente.
Chico escuta mais num escuta e peia que desce
no costado de Biliu e segue ainda a dizer:
— Ara sô, uma coisa que num sei dizer é se
fantasma fala. Biliu é lá da famia dos fantasma? Biliu é vivo, vivim da silva e
tá lá na bodega pra me pagar a aposta. Tome e tome que é pra num querer me
fantasmar mais — E peia que canta no espinhaço de Biliu.
Biliu num aguenta mais e se entrega. Desvestindo-se
do lençol, apresenta a cara apanhada a Chico. Este o olha espantado, com
piedade safada nos olhos.
— Uai, num é que é Biliu mermo. Porque num
disse logo homi, tinha livrado deu quebrar a cruz do defunto.
Biliu agora sente o medo da noite e sai numa
carreira sem fim. Chico junta os pedaços dá cruz e logo chega à venda, onde
todos estão em conversa de que este não volta mais. Ao enxergarem Chico e a
cruz, surpresa nos olhos de todos. Uns gritam, outros recebem apostas, outros
pagam. Uns fazem o sinal da cruz e outros deixam o ambiente assustados. Chico
recebe a aposta que estava nas mãos de Zé Lagoa e pede mais uma pra tirar a inhaca
do cemitério. A noite é de comemoração e o medo ficou para trás.
De Biliu não se sabe e ninguém viu. Dizem que
ainda deve estar por aí, vagando feito fantasma, a curar as marcas cravadas nas
costas e na alma. O dia amanhece e a procura por Biliu norteia os sorrisos em
todos as cantos da cidade.
Roberval Paulo