quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

ANGÚSTIAS! - Roberval Paulo

Não sei mais por onde andar
Não sei nem porque cheguei
Meus caminhos caminhei
Por entre serras e mar
Viajei daqui pra lá
O inverso também fiz
Risquei o chão feito giz
Sendo o ator do meu passar
No quadro negro do olhar
Não sou triste nem feliz


Feito cordão de enxurrada
Desgovernada e sorrindo
Se arrastando e destruindo
Sou eu abrindo a picada
Um rasgo no mei do nada
Sigo formando erosão
Carregando a nação
Viagem desesperada
Tô pra lá da caminhada
E ainda rasgando chão

Minha vida se varia
Quando falo de saudade
Ouço gritos da cidade
No cantar da cotovia
A noite dentro do dia
É complemento do nada
Cravo no peito a espada
Do teu olhar matador
Me acho no teu amor
Te perco na caminhada

São tempos tão conturbados
O que hoje vivenciamos
Que de uns tempos para cá
Não sei nem de quantos anos
É tanto acontecimento
Que eu penso por um momento
Que nos desencaminhamos.

Roberval Paulo

DESCONSTRUINDO A POESIA - Roberval Paulo

Minha cidade é tão bonita!
Composta de ladeiras e descidas
Você sobe e depois desce
Pois se não descesse,
Era capaz de dar direto no céu

Mas minha cidade é realmente bela
Repleta de mangueiras, quintais e laranjais
Você sobe, tira e de lá desce
Porque se não descer,
Com o tempo vem a cair feito manga

Minha cidade é mesmo bela, tão bonita!
Sinfônica na sinfonia dos pardais
Você escuta e tome viagem no tempo
Mas não sobe e nem desce
De verdade, nem sai do lugar
Só escuta e ali mesmo fica,
A pisar na física do chão do chão

Minha cidade é ainda mais bela e bonita
De serenatas e donzelas nas janelas
Você canta, ela escuta e tu corre
Porque senão o pai dela te acerta
E tá feita a confusão

Minha cidade é só minha cidade
E eu sou a poesia em desconstrução.

Roberval Paulo

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

CRENÇA! - Roberval Paulo

A folha da palmeira roça o meu rosto
E me diz palavras de vento
E lá distante, bem antes do advento
O coqueiro já era na beira do mar

As baleias e o seu canto chamando o amor
O apito do trem e a vida a passar
No norte da vida o sino a tocar
E os trilhos sem fim de um andar agnóstico

O existir é maior que a razão
E o natural é mais que qualquer plano
A ciência é o limiar de todo engano
E o amor não é fogo que arde sem se ver
É, antes de ser fogo, a própria chama
Que inflama, reclama e se porta feito dor
Mas é em mesmo tempo a cura indolor
Que faz a mãe amar o filho ingrato
Esquecendo de infarto e de súbito impacto
A dor maior, a dor sem cor
A dor de amor, a dor do parto

A ciência não é cura, é realmente infarto
A natureza é que leva a vida adiante
O homem traça a estrada errante
E se faz perdido entre a multidão
E eu o esteio do seio de Abraão
Que culpa tenho eu, eu não fiz a vida!
É que o pastor agora é a ovelha perdida
Se perdeu do rebanho e está sozinho.
O errar do homem é o seu existir
Que orgulho em ir sem saber pra onde ir
E se dizer senhor do seu destino?

Ora pois, que destino! Qual destino?
Como enfim a roda explicar?
A bola do mundo no espaço a girar
E eu rodando com meus pensamentos
Minha cabeça na bandeja do tempo
E eu avesso à cronologia
Mato um leão todo santo dia
E sou réu confesso do santo no altar
O bom da vida é saber esperar
Mas firmar o passo tão logo nasce o dia.

Roberval Paulo

EXISTÊNCIA! - Roberval Paulo


O existir está longe de ser isso que vês
O existir é tudo e não me iludo
Do ópio imaterial
à escuridão do matagal
Da imensidão do ser
à insignificância do ter

Penso, logo existo!
Descartes descarta a carta
Na casta de um mundo real
De um pensar que se desgasta
Se não pensar, inexiste?
Descartes tosse...e se engasga

Existir é ser espaço
É ser vento e ser andança
É ser o risco no passo
É ser o passo na dança

Viver é tão perigoso!
Ainda mais quando o vivente
Vivendo a vida se lança
Ao exercício de um tudo
E vestido de esperança
Se vai por aí sem rumo
Rumo ao rumo da distância
Tão distante que aproxima
A velhice da infância


Existir é contar estrelas e delas nada saber
Mas saber, inclusive, que elas nos habitam
Saber que no frigir dos ovos e da própria existência  
Somos mais estrelas que pó
Mais espaço que esfera
Mais trigo que pão de ló

Enfim, mais nuvem do que artérias
Mais espírito que matéria
Mais multidão do que só.

Roberval Paulo

JORNADA - Roberval Paulo

Rompi com os umbrais do estradar
Adentrei na fantasia todo altivo
Recordei o meu tempo de cativo
Para enfim valorar o caminhar
A estrada sempre foi o meu manjar
É que a mente saboreia o seguir
O viajante não se cansa de ir e vir
E o cansaço faz o ponto de parada
Já me vou pra lá do meio da jornada
Compilando, agregando e a corrigir

A jornada dessa vida é tão astuta
Que a estrada nunca diz como se andar
Ela só se mostra aberta e fica lá
Se dispõe e você faz a labuta
Como rota ela é absoluta
Sem ela você nunca vai chegar
A jornada e a estrada é um mesmo lar
São estas a bússola do viajante
Sendo perto a viagem ou distante
Tanto faz, vai ter que nelas passar

Então faça da vida sua estrada
Ora ande, ora pare a descansar
Desfrute de tudo que ela mostrar
Ande sempre mas também faça parada
Respire fundo quando esta for bloqueada
Altere a rota e planeje o próximo passo
Force a passagem se estiver no seu espaço
Caso contrário faça a correção de rumo
Busque um atalho, vá com Deus e siga o prumo
E descubra em que porto quer chegar.

Roberval Paulo



terça-feira, 7 de janeiro de 2020

O MENINO DO INTERIOR - Roberval Paulo


Esta crônica está publicada no 
Jornal do Tocantins CRÔNICAS & CAUSOS, edição 07/01/2020 

Conheci Charliedson a pouco mais de um ano na empresa em que eu trabalhava. Veio do interior tangido pela necessidade premente do estudo, buscando cursar a tão almejada e sonhada faculdade. Chegou à nossa empresa contratado como estagiário e trouxe-nos tanta alegria que até hoje, ao recordar-me das engraçadas situações em que Charliedson se metia em razão da sua genuína ingenuidade, derreto-me em sorrisos, mas também em agradecimentos por, em pleno século XXI – em que se consolida cada vez mais a batalha dos egos, do egoísmo e da individualidade – ter conhecido alguém ainda tão puro e tão íntegro, desprovido e despojado da poção ambiciosa que acomete a grande maioria da nossa tão assustadoramente mortificada população.

Charliedson era, e, após um ano de conhecimento e de vivências compartilhadas, continua sendo um caso a parte; um ponto fora da curva; uma laranja sã a retornar à sanidade as laranjas a muito apodrecidas. Um sonho real em nossa tão surreal realidade. Uma planta vicejante e alvissareira, regada pela água da simplicidade e da transparência Divina, a sobreviver e se fortalecer em meio à densa mata selvagem de ervas daninhas que buscam seu lugar ao sol espalhando sombras sobre o sol daqueles que não lhes agregam benefícios.

Vivemos a tão ultrajante regra do toma lá da cá; das relações pelas conveniências; do respeito ao próximo, mas só quando o próximo estiver bem próximo e não ameaçar a sua escalada, regra da qual, definitivamente, Charliedson não comunga e não faz parte de forma alguma, tão nobre é o seu senso de responsabilidade com a sua existência em relação à existência do outro.

Mas não só o seu caráter reto e probo e sua consciência igualitária chamaram minha atenção. A sua ingenuidade interiorana e matreira, seu ar de ironia sertaneja e seu comportamento entre acanhado e feliz, fizeram-me, a cada dia, um seu ávido e ardoroso observador e seu assíduo fã.

A nossa Capital, ainda em plena expansão e desenvolvimento, não é assim tão grande se comparada às grandes metrópoles, mas, para quem veio do interior, cidade com um pouco menos de dois mil habitantes, sendo sua primeira viagem à cidade grande, Palmas torna-se o gigante adormecido. É a metrópole vista pela televisão e agora desnudada frente à visão arteira de Charliedson, que no seu primeiro contato com as avenidas largas de tráfego intenso e com tanta gente atravessando nos sinais, olhou e nem pensou para lançar a sua primeira pérola: “Eita que com tanto carro e gente se misturando num dá nem pra saber quem ganha essa corrida. Fico olhando e num sei quem sai na frente”.

Os dias passam e todos os dias Charliedson traz graciosidade e liberdade para o nosso escritório de reclusão e de portas fechadas para o mundo lá fora. Leva bom humor aos mal-humorados e dá suporte, sem querer, aos que não mais se suportam. Quando ele chega parece que os cadeados da sisudez e do mau humor destravam-se e se destampam de sorrisos em resposta forçada pelo seu sorriso franco; pelo seu olhar entre desconfiado e acanhado, mas transparente e acalentador.

Certo dia chegou ao trabalho às gargalhadas e dizendo: “Hoje cedo me aconteceu o inacontecido que não tem como acontecer a quem acontece, só a mim mesmo”. E ria de dar gosto de ver e de até imita-lo as gargalhadas. Frente aos nossos olhares e sorrisos, ele continuou: “Minha gente, entrei no ônibus hoje desligado da vida, dei o dinheiro ao motorista e chegando na catraca, rodei mais não passei. Olhei pro motorista sem entender nada e ele me olhava entendendo menos ainda. Ficamos olhando um pro outro por algum tempo sem nada falar e aí ele disse com o olhar arregalado: –Tu num passou? Eu respondi: –Num passei. Olhamos de novo um pro outro, desconcertados. O ônibus parado, passageiros me atropelando e entrando, o povo me olhando e eu olhando pro motorista querendo que o mundo acabasse ali ou que uma bomba explodisse e tudo deixasse de existir. Aí o motorista correu as vistas pelo todo do ônibus e fitando-me de novo, começou a querer rir e eu disse: –Se tu rir eu choro bem aqui. Caímos todos numa gargalhada coletiva mas tão desconcertante que quando cessou, imperou-se de novo o silêncio da morte. Sem saber o que dizer e com vergonha de dizer, eu só disse: –E agora? Ele ainda de olhar arregalado, respondeu: –Agora lascou. Criei coragem e disse:  –Tem mais dinheiro não? Ele respondeu: –Agora que lascou foi tudo. Rimos de novo, mas um riso contido a procurar buraco pra esconder a cara. Ele pensou um pouco e disse: –Senta aí, –e me apontou o tampão do motor– vai aqui mesmo e lá tu sai pela entrada que aí é como se tu num tivesse nem entrado. Eu disse: –Tá –e sentei.

Tava quente, bem quente aquele tampão de plástico duro, mas num tive nem coragem de me levantar. Chegando no meu destino ele parou e me olhou. Eu o olhei, levantei e desci sem dizer nada. Lá de fora virei e ele tava me olhando com o canto da boca meio subindo e a veia da goela quase a saltar do pescoço; acho que tava querendo rir mais de mim. Se riu se não riu eu num sei, pois virei as costas e saí num caminhar tão ligeiro que parece que nem pisava no chão, ia flutuando. Eu caminhava mas parecia estar voando e com aquela sensação de não existir. Foi essa talvez a maior vergonha que já passei na vida por causa de uma catraca que rodei e num passei. Credo em cruz! À tarde volto por outra rota, mais aquele motorista quero ver mais não.”

Rimos todos e o dia começou mais leve e alegre pela alegria de Charliedson que fazia graça até na dificuldade. Um ano se passou e passou o seu estágio e ele se foi. Acho que foi por aí a clarear onde é escuro, pois foi o que ele fez aqui durante a sua estadia. Estou com medo que a escuridão volte ao nosso viver como antes de Charliedson. Por isso sigo lendo a sua lição e sereno e confuso, vou estagiando a nossa permanência no estágio em que ele nos deixou. De graça e de paz, mesmo quando graça e paz não nos forem presentes. De sol e de luz mesmo quando as sombras insistirem em nos escurecer.

Roberval Paulo


quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

QUE O NATAL SEJA SÓ O NATAL - Roberval Paulo


O menino Jesus nasceu!
Num estábulo, uma manjedoura, em meio aos animais. Em um ambiente rústico e pobre, mas, carregado da energia vital do existir e da essência viva da vida na natureza. Trouxe em si a simplicidade para o mundo e a humildade das almas generosas.

O menino Jesus nasceu! Não tinha mansões, nem castelos, nem riqueza, nem tão pouco ostentação. O berço foi arquitetado ali, na hora e, astuciosamente, feito com palhas, a matéria prima disponível no ambiente e que agasalhou bem alcochoadamente aquele minúsculo corpinho cheio de divindade e o aqueceu do seu próprio calor; o calor da vida em sua total plenitude.

O menino Jesus nasceu e não trouxe consigo poder nem ouro; nem palácios, nem reis. Não trouxe ambição ou egoísmo, muito menos soberba, ou preconceito. Nem inveja, nem luxo; nem maldade e nem destruição.

O menino Jesus nasceu e trouxe sim, a construção de um mundo novo.
A boa nova foi anunciada e o verbo de Deus se fez carne, para habitar a terra e salvar a humanidade tão sem rumo, cumprindo-se assim as escrituras sagradas.

O menino Deus nasceu e trouxe à humanidade, o amor perdido, esquecido e sepultado na ambição e egoísmo dos homens. Trouxe simplicidade e humildade; trouxe generosidade e os ensinamentos para uma vida reta, justa, digna e repleta de amor de uns para com os outros.

O menino Jesus, nosso Deus e Salvador; nosso ser onipotente e divino tornou-se carne; tornou-se homem para a salvação da humanidade, sua imagem e semelhança.

E, na sua pureza de homem santo, foi perseguido. Foi julgado, condenado e sacrificado, sentindo no corpo e na alma, a dor e o abandono daqueles que tanto amou e ama, feitos, por amor, à sua imagem e semelhança.

Jesus Cristo morreu pregado no lenho da cruz para a salvação do mundo.
Quanto sacrifício! O sacrifício da própria vida por aqueles que o negaram e renegaram e o abandonaram, lavando as mãos.

A vida venceu a morte, é o que nos é pregado. Será que realmente venceu?
Como a vida venceu se continuamos a morrer todos os dias. Não estou aqui falando da morte em seu sentido literal e natural.
Estou falando da morte que sofre a sociedade todo dia.
A morte pelo desprezo, pelo descaso, pelo abandono.
A morte pela exclusão, discriminação; a morte pelos preconceitos.
A morte pela ambição e egoísmo dos que querem sempre mais, não se importando com a vida dos seus iguais.
A morte pela acumulação de riquezas que confinam no curral da miséria sociedades inteiras que mais parecem bichos largados e caminhando sem destino, aguardando a hora não programada da triste partida.
A morte protagonizada pelos artistas-vilões mor dos sistemas e organizações políticas que rezam nas suas constituições o cuidado e o zelo com a população.
A morte pela falta de amor do homem para com o homem.
A morte pela falta de amor do homem para com o seu igual, unicamente.

O menino Jesus nasceu.
É Natal. É Natal! É Natal?
É Natal e eu não sei o que fazer nem o que dizer.
É natal e tudo continua igual como se o natal já fosse antes do nascimento.

Jesus Cristo nasceu e...que ele não volte senão o matariam de novo.
Que Jesus só habite em nossos corações. Em todos os corações da humanidade e das vidas todas.
E que o natal seja...........................................................Natal. Somente Natal...

Roberval Paulo


terça-feira, 17 de dezembro de 2019

LIÇÃO DA VIDA - Roberval Paulo - Texto publicado no Jornal do Tocantins de 16/12/2019


CRÔNICAS & CAUSOS

Aconteceu no estacionamento de um shopping. Era domingo, tarde de domingo, ocasião em que os shoppings estão cheios. O estacionamento nem se fala. Parece mais congestionamento da Avenida Brasil e Marginal Tietê, juntas. O sol flutuava majestoso num céu claro de azul distante e já descambava para o poente, anunciando o crepúsculo com seus efeitos áureos e enfumaçados. Na terra, outro crepúsculo. O da correria da humanidade. Formigas desesperadas, em todas as direções, sem destino certo. Correr por correr. Comer pipocas, tomar sorvetes, cervejas; beliscar, patinar, faz-se tudo. Cinema! Ah! Cinema nas tardes de domingo; nada mais romântico. Correria total! Aventureiros e exploradores, sem eira nem beira, dos prazeres da vida. Do bom bate papo, do entretenimento, do descanso e do sossego. Da novidade das caras novas, do flerte. Do lazer da família em busca da paz tão sonhada do fim de semana, nessa bagunça infernal. Caos! Tudo em movimento, tudo anda, ou melhor, corre. Até os seres inanimados das lojas e vitrines parecem adquirir vida.

É tanta confusão e magia que até me perdi no texto. O que eu queria mesmo era contar um episódio que se deu no estacionamento de um shopping, numa tarde de domingo e, perdido em meio à multidão, acabei aderindo à confusão e correria dos shoppings nos fins de semana.

Bem,  vamos ao fato; agora ele acontece. Carros passeiam entre as filas à procura de vagas, perfilados como um pelotão de soldados, não necessariamente naquela mesma ordem. Uns entrando, outros saindo, buzinando, aguardando. Foi aí que se deu o já anunciado acontecimento.

Uma camioneta último tipo caminhava inquieta e nervosa por entre seus colegas, à procura de um espaço para descansar seu designer perfeito e tão harmoniosamente disposto sobre suas quatro rodas, reluzentes e imponentes, levando em seu interior um cidadão de meia idade, não tão último tipo quanto ela, "a camioneta", mas considerado um bom partido entre as moças casadoiras.

Não muito distante dali, um pouco mais atrás, um fusquinha ano 67, desesperado e ofegante da tão longa jornada e já gasto pelas marcas do trânsito, garimpava um espaço para repousar sua  maltratada estrutura que vinha gemendo e grunhindo, mal agasalhado que estava em cima daquelas quatro rodas tão bem desfiguradas, levando em seu lado de dentro uma senhora já na melhor idade, – aquela mais perto do outro lado – de óculos, feições gastas pelo tempo, mas conservando em seu semblante aquele longínquo arzinho de garota levada.

Eis que de repente a camioneta passa por um espaço em aberto, de onde acabava de sair o próprio Henry Ford. Num grito de triunfo e mais que depressa, pisa no breque, liga a seta e engrena marcha a ré e, já em movimento contrário, procurando o retrovisor para se orientar, dá de cara, ou melhor, de costas com o fusquinha que, numa manobra digna de um fórmula um, arremete-se ao espaço a pouco vago, fazendo-o seu, deixando desolada a camioneta que vislumbrara primeiro essa tão disputada e singular vaga.

O condutor da camioneta aciona o freio de mão, apeia, caminha na direção do fusquinha dirigindo-se à velha senhora. Argumenta e reclama, porém, elegantemente.
– Minha senhora, a vaga era minha, eu vi primeiro. Não foi correta a sua atitude.
A senhora olha de soslaio para o cavalheiro e num ar de deboche, sentindo-se vitoriosa, arremata.
– O mundo é dos mais espertos doutor.
– Mas... –redarguiu o senhor, no que foi interrompido.
–Não tem mais nem meio mais doutor; o mundo é dos mais espertos.

O cavalheiro, boquiaberto, parece não acreditar no que acaba de ouvir. Sem palavras para responder, perde as estribeiras, deixa de lado a razão. Dá meia volta e entra na camioneta, nervosa. Fazendo roncar o motor, promove uma ousada manobra e projeta-se na direção do fusquinha que, descansado e desprevenido, não teve forças nem tempo para reagir. O choque foi forte. Um estrondar bombástico e o fusquinha está despedaçado, partido ao meio. Um amontoado de lata e ferro retorcidos. 

A camioneta faz nova manobra, parando ao lado do fusquinha e da velhinha, e seu condutor, botando fogo pelas ventas e com a raiva de mil siris em latão de água fervente, dispara em gritos.
– O mundo não é dos mais espertos não minha senhora. O mundo é dos que tem dinheiro.

Faz um ligeiro aceno de mão e arranca a toda velocidade, deixando para trás uma mistura em resíduos de asfalto e óleo no olhar assombrado e espantado da pobre senhora que, incrédula, olha desesperada o monte de ferro e lata que há segundos atrás era a sua condução. Lágrimas de esperteza e ferrugem se unem num chorar tão doído que nem o arrependimento duo, de velha e de fusca, é capaz de conter. 

Dois corações marcados pelo tempo e pelo trânsito, recebendo da vida, ainda que tardio, a lição de que, mesmo na urgência ou necessidade, a humildade e o respeito ao direito do outro devem prevalecer, sendo estes a tônica para o entendimento, evitando assim o risco da desonra e da humilhação.

Roberval Paulo

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

PRA QUANDO EU PENSAR EM FALAR! - Roberval Paulo


Quando tiver que falar, fale.
Se tens algo a declarar, declare.
Não segure as emoções
Nem os sentimentos

Quando de alguém gostar,
diga que gosta
Se a alguém amar,
diga que ama.

Tudo é tão fugaz!
Tão rápido!
Que o tempo se desfaz
Numa vírgula do tempo
E não mais haverá
Nem tempo nem vento
Nem o que disse
Ou deixou de dizer

Nada mais será
Nada existirá
Nem quem ama
Nem o ser amado.
Seja presente!
Não seja passado!

Roberval Paulo

SOLIDÃO! - Roberval Paulo

Não, não me curvo
Não me curvo nem me curvarei
Mas também não me levanto
diante da solidão
Antes me faço contemplativo e reflito
Reflexão cura até dor de engasgo.

Não me tragam novidade sem visitar o velho
Não e não, pelo amor de Deus!
Que o novo venha,
mas venha no seu natural,
no seu tempo.
Não apressem a curva da vida

Não tropecem no seu falar e língua
Não queiram de mim
o que não lhes posso dar
Se pressas têm, sigam sozinhos
Sigam sozinhos e deixem-me
com as minhas muitas flores e dores

Que delas
saberei cuidar
E delas saberei
extrair a luz.

Extrair a luz
Reluzir o meu dia
Voltar à harmonia
e à paz que tanto almejo.

Roberval Paulo

ENAMORADO - Roberval Paulo

Ontem me vi 
no espelho da lua 
e ela, sorrindo,
me disse, sou tua. 

E é a lua, 
desde ontem, 
a minha mais nova namorada... 

Roberval Paulo

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

O PARTIR ANTES DO TEMPO - Roberval Paulo

Às vezes penso que o segredo de tudo está nos porquês?
Penso e repenso até o mundo ficar tenso
Inclinado, descaído, pendido, penso…
Penso, só penso!
Mas não me atrevo a dizer.
Porque se vem, porque se vai?
Porque que vem quem nada tem?
Por que um ser se detém antes mesmo de nascer?
O porquê de se ficar tão pouco tempo aqui
O porquê de se passar tanto tempo sem medida
Na subida desta vida sem este sol merecer.
Penso também que é porque não existe um por quê?
O porquê é só um ser mais enigma que razão
Não um ser, uma equação que se vai a resolver
Que ninguém conhece a fórmula,
Que não perece, renova, sem nunca ao seu fim chegar
Qual romeiro em romaria pelo caminho sagrado
Que segue desarvorado só com o instrumento da fé
Novena que só rezando faz um milagre danado
Sem nada ser explicado, sem porque, sem paramento
Mas que segue devorando
Homens, sonhos, pensamentos
Semeando contra o vento a planta do bem virá.
Porque se vai pela estrada sem ter chegado a sua hora?
Tanta dor deixa pra trás, tanto sofrer… Oh! Tormento!
Quanta saudade a encher o existir do meu peito
Angústia que quase mata que é um tanto doer!
Que não explica, se sofre,
Que nada entende, só sente
Que não quer este presente que a vida lhe fez herdar
Quer até recomeçar, mas não tem forças… é inclemente.
O sangue de um inocente que o inevitável levou
O cálice que derramou antes do seu transbordar
Como entender o porquê da vida interrompida
Sem um motivo aparente, sem a razão se mostrar.
Penso que é por quê… Não sei dizer o porque
Talvez nem tenha porque, talvez tenha. O que fazer?
É o mistério da vida que segue pregando peças
Não deixa aresta nem brecha para um porque indagar
Só nos resta o consolar compassivo de meu Deus!
Oh! Deus de misericórdia! Deus de bondade infinita!
Já que sofri esse golpe que não pedi pra sofrer
Dê-me forças pra viver… pra vida continuar.
Cubra-me com o teu amor, com tuas bênçãos Senhor
Mostre-me o prosseguir, me guie com o teu olhar
Sou só dor, sou um ser andante que se perdeu no caminho
A força deste destino eu não queria viver
Mas se me deste é porque me conheces mais que eu
Vais saber como amparar seus filhos que estão perdidos
Senhor Deus, me dê motivos e me livre de morrer
Nos oriente a encontrar a razão de estar aqui
Eu não sei mais nem porque estou a sofrer assim
Porque a tirou de mim? Porque nos deixou tão só?
Meu Jesus! A tua benção, tua guia e proteção.
Ensine-me a não morrer, dê-me os porquês do ocorrido
Porque que me tens nascido pra suportar tanta dor?
Meu Senhor! Só o teu amor pode enfim me redimir
Ajude-me a persistir nesse caminho de morte
Dê-me um norte que preciso o teu amor encontrar
A vida continuar, nova razão existir
Meu Jesus! O teu perdão, que essa cruz que te chagou
Seja a mesma a me valer pra tua luz eu seguir.
Que eu possa um dia entender que assim é que tinha que ser
Que tudo valeu a pena e que nada foi em vão.
Amém Senhor! O teu perdão!
Roberval Paulo

CAMINHANTE - Roberval Paulo


Se me perco, és o meu encontro
Se me escondo, sou o teu achado
Se me despenco, tu me tens ao colo
Se me vejo só, estais ao meu lado

Se choro, és tu o consolo
Se estou triste, me dás alegria
Se me sinto pobre, tu és meu tesouro
Se me falta luz, és tu o meu guia
                               
Quando canto, és tu a canção
Se tenho frio, tu és o abrigo
Se me apaixono, és minha ilusão
Se estás comigo, já não há perigo

Se sou o fim, tu és o começo
Se sou o começo, és tu o meu fim
Se choras, se sofres, sou eu quem padeço
Se tens alegria, alegras a mim

Sou labirinto, tu és a saída
És flor na minha vida, sou o teu jardim
És enfim, meu oásis, sou eu, do deserto
O caminhante, ao certo, tenho a ti, tens a mim.

Roberval Paulo

INFINITO AMOR, AMOR INFINITO! - Roberval Paulo


O infinito é tão grande
Que não tem fim
Como explicar o infinito?
Não se explica
Se é infinito, não tem dimensões
                   nem limites
                   nem referências
Impossível de ser medido.

Agora entendo
É por isso!
É por isso que não compreendo
               que não explico
Nem o infinito
Nem o meu amor
Também é infinito
E está dentro de mim.

Só não sei como pode
Estar em mim esse amor
É amor infinito
Infinito amor
E dentro de mim
Também sou infinito
Eu, o infinito, o amor
Infinitamente infinitos.

Roberval Paulo

ENIGMA - Roberval Paulo


Eu sou o elo de ligação entre tu e mim
Eu sou a comunicação entre a vida e a morte
Eu sou o sol a dourar no jardim
Eu sou em mim o tom negro da noite

Eu sou a flor do começo da vida
Eu sou a flor, uma flor para Ana
Eu sou o amor da mãe pelo filho
Eu sou a vida sempre por um fio

Eu sou Cristina, Fernanda, Maria
Eu sou o cão, amigo do homem
Eu sou toda a vida mais nem sei o meu nome
Eu sou o começo do fim que te espera

Eu sou, nem mais sei o que sou
Nem quem sou, sou de mim desconhecido
Sou andante, navegante, me sou perdido
Sou você que nem mesmo me conhece

Eu sou enfim, a moça da janela
O olhar perdido em seu mundo interior
Eu sou o rio acalentando a flor
Mas minha obra prima ainda está por vir.

Roberval Paulo