sexta-feira, 20 de abril de 2012

REMINISCÊNCIAS PÓSTUMAS DE UM MORTO VIVO - Roberval Paulo


Quando morri para os dias da vida
E parti na garupa da moça branca de neve
Vivi a enganação dos vivos
E ali, mortinho da silva, me vi carregado
Em ombros que eu nem conhecia

Lágrimas, muitas eu vi
De quem eu nem conhecia o pensar
E ao amigo olhei e caí a cara morta
Estava os olhos vidrados
Nos seios da viúva minha

Morri, é a quarta minha morte; não sabia morrer
Se soubesse não estaria vivo nesse corpo morto
Me vendo falsidade em olhos que tanto amei
Me rindo de bocas a quem nunca falei
Chorando a hipocrisia de vivos me querendo morto

Morri, já sinto a vida da morte
Roupa branca, mãos ao peito e suaves flores
Meu corpo deitado no caixão. A sala cheia
Amigos, parentes, desconhecidos e,
Minha Mãe
As lágrimas verdadeiras; soluça, como soluça
Sofre e mais soluça e se agarra ao morto seu
O morto que gerou em suas entranhas e não mais vive
Um corpo sem vida, que ainda vive, inanimado
Animado pelo amor de minha mãe, que jaz, mortalha viva
Parece que ela é quem morreu

Quis voltar da morte com uma mínima vida
Só para consolar-te Mãe, mas,
Estou morto e sinto o cheiro do morto que sou eu
Aquele cheiro que só velório sabe exalar
Mistura-se ao cheiro de flores mórbidas e de lutuosas velas
Velas em chama sem a chama da vida

Viver é muito perigoso, já dizia o poeta
Viver não é só perigoso; é muito mais que isso
Diz esse morto ainda quando a vida lhe vicejava
Ainda mais quando a morte se morre viva
O enterro vivo do morto que não morreu

Ser enterrado vivo mesmo quando jaz morto
Sem entender, o morto, ali, vendo a vida
É o medo visitando este corpo inerte
E perfura minhas carnes mortas com pontiagudos diamantes
E meu sangue escarlate de um róseo azulado
Escorre pelos meus dentes ausentes de vida

Meu corpo já sinto nada, matéria podre e fétida
Se decompondo, putrefacto, ossos e sangue gélidos
As carnes e vísceras rasgadas e inúteis e belas
Nos olhos e ouvidos, os vermes fazendo festa
Sinto o medo da morte que já vive em mim
A morte viva que nos vem mostrar o óbvio
Na terra o ópio, cabeça rolando e línguas e bocas
Aos urubus atônitos com seus olhos de desprezo

À terra que aceita tudo, resignado me vou
Ao pó voltar para a vida morte prosseguir
E amanhã, eu pó, possa florar uma goiabeira
E ali, em fruta, alimentar uma sabiá
Que me vem bicar os sonhos que eu não soube usar em vida

A morte morta já é mais do que a vida
Morto só se sabe sendo terra, sendo pó
E de ti, ver nascer tão doces frutos
E águas e plantações e lavouras de todo gosto
Que vão engordando a vida na estrada do matadouro

Nessa verdade, eu quis até chorar
Mais ao morto não se permite nem mesmo lágrimas
Ao morto só é dado o pó da estrada
Por onde caveiras vivas trafegam e suam e riem
E lutam e choram e sonham e tudo vivem
Sem saber que esse caminho e essa poeira impregnada
Tantas vezes percorrido, tantas vezes repisada
É inexplicavelmente, o seu futuro e eterno lar;


Roberval Paulo

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