terça-feira, 29 de janeiro de 2019

O TRÁGICO FIM DE HORINHA DE DEUS - Roberval Silva


JORNALDOTOCANTINS.COM.BR
"O dedo polegar levantado simultaneamente à resposta, no que ríamos de nos perder em graça"

Essa crônica de minha autoria está publicada no Jornal do Tocantins de 29/01/2019. Leia o texto completo a seguir:

O Trágico fim de Horinha de Deus

Horinha de Deus foi o nome que lhe demos tão logo chegou à nossa cidade, por volta do ano de 1983. Veio da estrada. Era desses que saem pela vida sem destino certo, fazendo parada e morada aonde afeto e carinho encontrar. Lá se radicou por força dos sorrisos e abraços recebidos nas ações espontâneas e características do nosso povo quando se trata de acolhida.

Seu nome verdadeiro não me recordo. Horinha de Deus fazia jus a este emblemático morador, pois respondia prontamente a cada cumprimento que recebia, com o dedo polegar em riste, exprimindo freneticamente: - na horinha de Deus. Muitos e, principalmente, as crianças, o cumprimentavam sempre e às vezes até pelas costas só para ouvir a imediata frase: - na horinha de Deus, com o dedo polegar levantado simultaneamente à resposta, no que ríamos de nos perder em graça.

Mas Horinha de Deus nos era desconhecido. Estava ali todos os dias no nosso meio, andando pelos bares, comércio da cidade, pontos de encontro e na praça principal, sempre rodeado ou rodeando as reuniões típicas e comuns do interior, fazendo suas graças, tomando sua birita e em harmonia e graça com todos.  Mas de fato não o conhecíamos; não sabíamos de onde surgira nem onde seria sua próxima parada. Vivíamos ainda o romantismo da inocência interiorana que acolhe a todos e qualquer, sem amiudar a origem.

Deixando por hora o Horinha de Deus, volto minha atenção para o outro lado dessa história, apresentando-lhes uma família pioneira da cidade. Senhor Zico e Dona Dita, pais de quatro filhos, moradores da zona rural em um sitio a pouco mais de meia légua da cidade, trajeto este feito quase que cotidianamente a pé ou de bicicleta quando das idas à cidade para compras ou visita aos filhos mais velhos que por lá já residiam.

Quando e como se deu, caro leitor, o trágico encontro desta família com Horinha de Deus é o que veremos a seguir.

Em uma manhã de verão escaldante, Dona Dita, montada em sua bicicleta, trazendo à garupa o filho menor, deixa o sítio com destino à cidade. Na bagagem, queijos frescos para venda no comércio. Concretizada a venda e já de posse de alguns víveres, visita os filhos e retornam ao sítio neste mesmo dia no período da tarde. Seu Zico tinha ficado sozinho e as tarefas do sítio são muitas; necessário era o imperioso retorno neste mesmo sol.

Não sabia Dita que seu retorno era vigiado. Realmente não o conhecíamos, pois era Horinha de Deus quem os espreitava, seguindo-os em outra bicicleta. O sol dava mostras de abrandar o seu fulgor, trazendo as primeiras sombras ao caminho, enquanto sombras outras e maléficas rodeavam as pedaladas de Dita.

A tarde já se despedia quando venceram a primeira metade da jornada, sendo alcançados neste momento por Horinha de Deus que os seguia de perto. Não se sabe com que motivação ou o que intentava, mas o fato é que Horinha de Deus partiu para o ataque, jogando Dita ao chão ao mesmo tempo em que, à força, tentava desvesti-la de suas roupas. Entraram em luta corporal, com Horinha de Deus tentando domina-la e despi-la, mas Dita resistia com a força de uma leoa defendendo a cria.

No ataque, ao derrubar a bicicleta, o pequeno que estava na garupa caiu a uma distância de metros e dali mesmo se pôs em vertiginosa carreira rumo ao sítio onde se encontrava o pai, seu Zico. Era uma distância considerável para tão pequeno ser, mas vencida em instantes pela força do salvamento que precisava ocorrer. O pequeno chegou ofegante e seu Zico entendeu no olhar desesperado do filho que Dita estava pelo caminho e corria perigo.

Lançou mão da espingarda que descansava pendurada na parede da sala e saiu a passos largos pela estrada, seguindo a corrida incansável do pequeno guia. Alcançou o local da contenda onde Dita ainda resistia em luta bravia com aquele que ousava, pela força e covardia, manchar sua moral e sua verdade de mulher honrada. O fim não podia ser outro e quantas vezes me pergunto sobre o fatídico episódio, tentando merecer ou almejar um outro desfecho, ressalto sempre: de fato, não o conhecíamos e não podíamos atinar para tão depreciável atitude, porém, sem julgamentos, pois não nos cabe.

Volto um pouquinho na história só para que o leitor visualize e vislumbre esse quadro visto por seu Zico ao chegar ao local. Seu filho tão pequeno, ofegante em avisa-lo e a mostrar-lhe o caminho; sua velha e querida companheira de uma vida toda ali jogada ao chão, sendo subjugada por um estranho, tendo já metade das roupas rasgadas e bravamente resistindo. Um misto de emoções percorreu todo o seu corpo, correndo por suas veias, arrefecendo seus músculos, enchendo de sangue o coração e a mente, aflorando os instintos primitivos que nos habitam e dormem quando tudo em nós está harmônico, bastando uma pequena desarmonia para que estes se manifestem.

A desarmonia estava à mostra e era demasiadamente brutal. Seu Zico apressa o passo e ao ter percebida sua chegada, grita seus alertas para que o agressor a deixe. Este porém levanta-se rapidamente e tomado pela fúria ou sei lá qual outro sentimento, parte para cima de seu Zico de braço erguido, empunhando uma faca na mão direita e vociferando em brados agressivos e incompreensíveis. Não resta a seu Zico outra alternativa. O tiro parte e alcança Horinha de Deus bem debaixo do braço, que cambaleia e tomba ao chão de bruços, já sem vida. Foi alcançado em lugar mortal. 

As autoridades são chamadas. Seu Zico presta esclarecimentos. Vê-se criminoso, sente-se criminoso. Foi em legítima defesa da honra, não tinha ele outra saída. Redime-se consigo mesmo e almeja pelo perdão.

Horinha de Deus vai ao sepulcro ali mesmo na cidade, pois seus restos mortais não foram reclamados. Era sozinho, não se sabe de parentes. A ida ao inevitável fora da curva, pela ação fora do esquadro que tão bem esquadrinha a vida. O retorno ainda mais só do que o só, sem choro e sem vela, só com a vela do descanso final. – Deus cuidará! Ainda ouço o ressoar das vozes de muitos aos meus ouvidos.

Dita está salva, o pequeno também, mas o desfecho é triste e trágico. A família está intacta, mas são profundos os arranhões e as marcas no corpo e na alma. 

Roberval Silva

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