Ele
pintava. Só pintava. Nada fazia sentido, exceto a pintura. Tudo perdera a
forma, a razão de ser, de existir. O porquê, o pra quê. O de onde vem, para
onde vai, nada importava. Tudo perdera tudo. Nesse momento, era o nada sendo
tudo e o tudo, ao mesmo tempo, sendo nada. Era ele e a tela. Só ela existia e
ele pintava.
Eu
observava, deslumbrada, com que enlevo ele encarava aquela tela e também me
encantava. Quanta magia naquelas mãos. Era contagiante, tanto que passei a
examiná-lo com mais atenção e vi aquilo em formas e cores se transformando.
Ainda não definia o que era, mas, tinha uma certeza. Ele pintava as minhas
cores. Só as minhas cores existiam no seu toque mágico de pincel e desfilavam
pelo universo sem fim da quadriculada e dimensional tela. Parece que tinham
vida própria as minhas cores.
A
cor dos meus olhos, dos meus cabelos, da minha pele. Das minhas unhas, dos meus
dentes, dos meus pelos. A cor da minha vida, dos meus dias. A cor da minha
poesia e da minha alma. Eram as minhas cores todas. O desenho ia tomando forma.
O escuro, o branco, o sem cor cedendo espaço ao colorido; o humano ao divino; o
sentimento dando lugar à arte.
Deliciei-me
com a surpresa. Lá estava eu, emoldada e ornada naquela paisagem inanimada que,
aos olhos da mente, vivia e dava vida àquele recanto tão só meu. Doce regato de
água e folhas, tão real e verdadeiro como o horizonte dos olhos. Eu estava
perfeita. Em carne e osso, em corpo e espírito, em branco e a cores, em alma e
sentimento.
Pareceu-me,
no entanto, que faltava algo. Olhei para ele e vi que exitava. Pintava,
matizava, contornava, parece que procurando descobrir o que de fato estava ali
ausente. E, de repente, tudo se torna claro a ele ao mesmo tempo em que a mim.
Era isso! Era só o que faltava e lá estava ele completando a sua obra com
maestria. A mão no pincel, os olhos na tela, o toque final, transcendendo o que
não se pode transcender. A mão ao coração para pintar um coração. O coração. O
meu, o nosso coração que eu já não sabia mais de quem era.
O
trabalho estava perfeito, acabado, terminado. Era divino, uma verdadeira obra
de arte. E era eu ali, deslumbrante naquela tela, intocável, majestosa. Tarefa
concluída. Soltei um desabafado suspiro e, me vi sozinho. Eu estava sozinho. Eu
era o pintor. Tinha me pintado na tela mais não era eu, era ela que ali estava envolvida
e embebida em tantas tintas e cores. No primeiro momento, achei que estava
doido, que tinha enlouquecido. Mas logo em seguida, num estalo, descobri que eu
era ela e que ela era eu. Ou melhor, eu estava nela e ela estava em mim. Enquanto eu
pintava, eu também era ela que se desprendia de mim e ali, do lado,
certificava-se se tudo estava saindo perfeito. Se ela estava saindo perfeita. E
assim, eu olhava para o pintor, que era eu, pintando ela, que estava em mim.
Não
me peçam que explique essa loucura; penso não ser capaz, nem acredito que isso
seria possível. Mas comigo acontece, aconteceu e tenho certeza, acontecerá. É
que eu, sou eu só, entende, mas ela está em mim, impregnada no meu ser e na
minha imaginação. Em minhas mãos, nos meus gestos, na minha mente e no meu
coração.
E
ela é tão real em meu pensamento que eu me dispo dela e a ponho do meu lado
para passá-la à tela, enquanto ela me observa. E isso, de tal maneira,
parece-me tão verdadeiro que às vezes ouço a sua voz e até conversamos.
Mas
logo, tarefa concluída, me vejo sozinho e caio na real realidade. Ela me dá um
breve adeus e volta para dentro de mim, passando novamente a alimentar meus
sonhos, minha mente, meu sangue, meu coração, meu corpo inteiro. Eu todo, inspirando-me
para a criação do próximo trabalho, quando a terei novamente do meu lado. Ela,
fulgurante, se deliciando e irradiando felicidade e prazer por protagonizar
esse meu devaneio tão real.
É
a minha mais doce história de amor. Somos dois nessa narrativa de um só. Eu, o
pintor.
Roberval Silva
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