Quando morri para os dias da
vida
E parti na garupa da moça
branca de neve
Vivi a enganação dos vivos
E ali, mortinho da silva, me
vi carregado
Em ombros que eu nem conhecia
Lágrimas, muitas eu vi
De quem eu nem conhecia o
pensar
E ao amigo olhei e caí a cara
morta
Estava os olhos vidrados
Nos seios da viúva minha
Morri, é a quarta minha
morte; não sabia morrer
Se soubesse não estaria vivo
nesse corpo morto
Me vendo falsidade em olhos
que tanto amei
Me rindo de bocas a quem
nunca falei
Chorando a hipocrisia de
vivos me querendo morto
Morri, já sinto a vida da
morte
Roupa branca, mãos ao peito e
suaves flores
Meu corpo deitado no caixão.
A sala cheia
Amigos, parentes,
desconhecidos e,
Minha Mãe
As lágrimas verdadeiras;
soluça, como soluça
Sofre e mais soluça e se
agarra ao morto seu
O morto que gerou em suas
entranhas e não mais vive
Um corpo sem vida, que ainda
vive, inanimado
Animado pelo amor de minha
mãe, que jaz, mortalha viva
Parece que ela é quem morreu
Quis voltar da morte com uma
mínima vida
Só para consolar-te Mãe, mas,
Estou morto e sinto o cheiro
do morto que sou eu
Aquele cheiro que só velório
sabe exalar
Mistura-se ao cheiro de
flores mórbidas e de lutuosas velas
Velas em chama sem a chama da
vida
Viver é muito perigoso, já
dizia o poeta
Viver não é só perigoso; é
muito mais que isso
Diz esse morto ainda quando a
vida lhe vicejava
Ainda mais quando a morte se
morre viva
O enterro vivo do morto que
não morreu
Ser enterrado vivo mesmo
quando jaz morto
Sem entender, o morto, ali,
vendo a vida
É o medo visitando este corpo
inerte
E perfura minhas carnes
mortas com pontiagudos diamantes
E meu sangue escarlate de um
róseo azulado
Escorre pelos meus dentes
ausentes de vida
Meu corpo já sinto nada,
matéria podre e fétida
Se decompondo, putrefacto,
ossos e sangue gélidos
As carnes e vísceras rasgadas
e inúteis e belas
Nos olhos e ouvidos, os
vermes fazendo festa
Sinto o medo da morte que já
vive em mim
A morte viva que nos vem
mostrar o óbvio
Na terra o ópio, cabeça
rolando e línguas e bocas
Aos urubus atônitos com seus
olhos de desprezo
À terra que aceita tudo,
resignado me vou
Ao pó voltar para a vida
morte prosseguir
E amanhã, eu pó, possa florar
uma goiabeira
E ali, em fruta, alimentar
uma sabiá
Que me vem bicar os sonhos
que eu não soube usar em vida
A morte morta já é mais do
que a vida
Morto só se sabe sendo terra,
sendo pó
E de ti, ver nascer tão doces
frutos
E águas e plantações e
lavouras de todo gosto
Que vão engordando a vida na
estrada do matadouro
Nessa verdade, eu quis até
chorar
Mais ao morto não se permite
nem mesmo lágrimas
Ao morto só é dado o pó da
estrada
Por onde caveiras vivas
trafegam e suam e riem
E lutam e choram e sonham e
tudo vivem
Sem saber que esse caminho e
essa poeira impregnada
Tantas vezes percorrido,
tantas vezes repisada,
É inexplicavelmente, o seu
futuro e eterno lar.
Roberval Silva
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